AP 470
Réus do mensalão podem recorrer à Comissão Interamericana
Quando
o tribunal mais alto de um país atua como única instância, a ausência
do direito de revisão por um tribunal superior não fica compensada pelo
fato de que o julgamento foi proferido pelo tribunal de maior hierarquia
do Estado. Pelo contrário. Isso significa que o Estado descumpre os
direitos humanos e viola frontalmente o sistema de proteção das pessoas
de San José da Costa Rica da OEA (Organização dos Estados Americanos).
Por
esta razão, a defesa dos réus no processo conhecido como “mensalão”
pode ainda não ter terminado e a sociedade precisa reconhecer e aceitar
que aqueles réus já condenados, como qualquer indivíduo (nacional ou
estrangeiro), têm o direito de ter seu caso examinado por todas as
instâncias de defesa, no Brasil e fora dele.
De início, é importante observar que a prevalência e a aplicação imediata
das normas de direitos fundamentais (humanos), no regime constitucional
brasileiro pós-1988, foram opções expressas do constituinte,
consubstanciadas, em concreto, pelas regras dos parágrafos 1º e 2º do
artigo 5º da Constituição Federal.
Razão
pela qual os réus submetidos ao julgamento direto e exclusivo do STF na
Ação Penal 470 podem recorrer à Comissão Interamericana, haja vista
violações evidentes da Convenção Interamericana de Direitos Humanos
(Pacto de San José).
O
entendimento da Corte Interamericana da OEA sobre a obrigatoriedade da
observância do direito de proteção judicial, especialmente no que diz
respeito ao direito de recorrer da sentença — inclusive de tribunal
superior, pode-se ver no julgamento do caso Barreto Leiva vs Venezuela,
cuja sentença data de 17 de novembro de 2009. Este caso teve origem em
uma demanda proposta pela Comissão Interamericana, apresentada em 31 de
outubro de 2008, a que teve conhecimento por denúncia do próprio
interessado, Sr. Oscar Enrique Barreto Leiva, condenado a um ano e oito
meses de prisão por delito contra o patrimônio público, como
conseqüência de sua gestão, no ano de 1989, como diretor geral da
Secretaria da Presidência da República da Venezuela. Dentre as várias
violações de direitos humanos registradas nesse julgamento, destacou a
Comissão o fato de que a Corte Suprema de Justiça da Venezuela havia
sido o único tribunal que conheceu e sentenciou em única instância o
caso, o que caracterizaria violação do direito do acusado de recorrer da
sentença condenatória.O Estado venezuelano, em sua defesa perante a Comissão, alegou que a Comissão de Direitos humanos da ONU, no caso 64 de 1979 contra a Colômbia, estabeleceu que “a determinação do direito à dupla jurisdição deve levar em conta os procedimentos estabelecidos nas leis e no direito interno”. Também referiu o caso “Duiliio Fanalio, da Comissão Européia de Direitos Humanos, ao reconhecer que o Tribunal Constitucional italiano era a única instância na medida em que se tratava de acusação contra ministro.
Contudo, a Corte Interamericana da OEA não aceitou nenhuma das linhas de defesa da Venezuela no caso Barreto Leiva. Sustentou a Corte que sua jurisprudência tem sido enfática no sentido de que o direito de impugnar a sentença busca proteger o direito de defesa, na medida em que outorga a possibilidade de interposição de recurso para evitar que fique definitiva uma decisão adotada em um procedimento viciado e que contenha erros que possam ocasionar prejuízos indevidos aos interesses dos jurisdicionados.
O direito a revisão da sentença condenatória confirma, como se vê, o direito de todos de recorrer da sentença e outorga credibilidade ao ato jurisdicional do Estado e, ao mesmo tempo, confere maior segurança e tutela dos direitos do condenado.
Do que se conclui que o entendimento da Corte Interamericana (e da Comissão) de Direitos Humanos da OEA, o qual deve também ser o nosso no Brasil, é no sentido de que quando o tribunal mais alto de um país atua como primeira e única instância, não fica compensado o direito do condenado de ter sido julgado pelo tribunal de maior hierarquia do Estado-parte, pelo contrário, tal sistema é incompatível com o Pacto de San José.
Ao não reconhecer e contemplar internamente o direito de recorrer da sentença nos casos de competência do STF, o Brasil viola, portanto, a Convenção Interamericana de Direitos Humanos. Ademais, o STF viola a Constituição Federal na medida em que (i)as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata (art.5º.parágrafo 1º), e (ii) os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados serão equivalentes às emendas constitucionais (artigo 5º, parágrafo 3º). Do que se conclui que o Pacto de San José convive com as disposições de direito interno brasileiro, mas está acima das leis internas e tem efeito imediato — uma vez ratificado pelo Brasil.
A
vontade implícita do legislador com a Emenda Constitucional 45/2004 é
mais ampla do que aquela que restou explícita no texto. Examinados
conjuntamente os parágrafos 2º e 3º do artigo 5º da Constituição
Federal, conclui-se que todos os tratados e convenções que consagram
direitos humanos fazem parte da ordem jurídica brasileira: (i) os
(ainda) não aprovados pelo Congresso Nacional por força do parágrafo 2º
(que não existia nas Constituições anteriores e por isso tem razão de
ali estar hoje); (ii) e aqueles já aprovados pelo Congresso Nacional por
força do parágrafo 3º.
Maristela
Basso é professora de Direito Internacional da USP, doutora em Direito
Internacional e Livre-Docente em Direito Internacional pela Universidade
de São Paulo, integra a lista de árbitros Brasileiros do Sistema de
Solução de Controvérsias do Mercosul e a lista de painelistas
especialistas em propriedade intelectual do Sistema de Solução de
Controvérsias da Organização Mundial do Comércio OMC.
Revista Consultor Jurídico, 27 de novembro de 2013
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AP 470
Corte Interamericana pode, sim, exigir novo julgamento
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No último dia 11, a Folha de S. Paulo publicou reportagem intitulada “Corte Interamericana de Direitos Humanos não é tribunal penal de revisão, diz presidente”,
segundo a qual Diego Garcia-Sayán, seu presidente, teria afirmado que a
“corte não pode modificar uma sentença. Se houve pena de prisão, ela
não pode aumentá-la ou reduzi-la”.
De
fato, está correto o presidente da Corte Interamericana quando destaca
que o tribunal não revisa “penas”, ou seja, não se manifesta sobre temas
que envolvem um processo “penal” concluído em um dos Estados-partes.
Assim, a Corte não diminui ou majora uma pena
criminal imposta pelo Poder Judiciário de um Estado-parte na Convenção
Americana de Direitos Humanos, e tal é assim pelo simples motivo de que
não se trata de um Tribunal Penal
Internacional. Aliás, tribunal dessa categoria (penal) só tem um em
todo o mundo: trata-se do Tribunal Penal Internacional, que tem sede na
Haia (Holanda) e cuja competência para julgamento diz respeito a crimes
que envolvem a humanidade como um todo, a exemplo do genocídio, dos
crimes contra a humanidade, dos crimes de guerra etc.
Contudo,
o que pretendem os condenados na Ação Penal 470 – e isso a reportagem
não deixou claro – é outra coisa bem diferente, nada tendo que ver com a
revisão das “penas” impostas. O que pretendem é que lhes seja
oportunizado novo julgamento em razão de ter o STF afrontado a regra do duplo grau de jurisdição, prevista no artigo 8º, inciso 2, letra h,
da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. De fato, ainda que o
tribunal interamericano não revise “penas”, pode perfeitamente condenar o
Estado brasileiro a dar a oportunidade de novo julgamento a todos os
réus que não detinham foro por prerrogativa de função à época do
julgamento.
A
questão jurídica aberta, muito simplesmente, é a seguinte: o STF
deveria ter desmembrado o processo do mensalão ao menos para os réus que
não detinham, à época do julgamento, foro por prerrogativa de função; e
assim não procedeu. Com isto, violou uma regra de direito internacional
– a do “duplo grau de jurisdição” – prevista na Convenção Americana
sobre Direitos Humanos de 1969, conhecida como Pacto de San José da Costa Rica, tratado internacional de direitos humanos que o Brasil ratificou (obrigou-se) em 1992.
Há,
inclusive, um precedente já julgado pela Corte Interamericana sobre o
assunto, e que se encaixa como uma luva à discussão. Trata-se do Caso Barreto Leiva Vs. Venezuela,
julgado pela Corte em 17 de novembro de 2009, ocasião em que o tribunal
da OEA entendeu que a Venezuela violou o direito ao duplo grau de
jurisdição ao não oportunizar ao sr. Barreto Leiva o direito de apelar
para um tribunal superior — a sua condenação também ocorreu em instância
única (no caso do mensalão, este tribunal é o STF). Em outras palavras,
a Corte Interamericana entendeu que o réu não dispôs, em consequência
da conexão, da possibilidade de impugnar a sentença condenatória, o que
viola frontalmente a garantia do duplo grau prevista (sem qualquer
ressalva) na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (artigo 8, 2, h).Como se percebe, o precedente do Caso Barreto Leiva coincide perfeitamente com a situação dos réus condenados na AP 470, uma vez que foram impedidos de recorrer da sentença condenatória para outro tribunal interno, em desrespeito à regra internacional do duplo grau que o Brasil aceitou e se comprometeu a cumprir. A Corte Interamericana terá que decidir se a aceitação dos embargos infringentes pelo STF supre a regra do duplo grau prevista na Convenção Americana.
Em suma, ainda que o tribunal da OEA não revise “penas”, não há qualquer óbice — e é para isso que ele existe! — para que condene o Estado brasileiro por violação da Convenção Americana, mandando eventualmente oportunizar àqueles condenados novo julgamento, em razão da não observância da garantia processual internacional do duplo grau de jurisdição. Isso é o que merecia ser esclarecido.
Valerio Mazzuoli é
pós-doutor pela Universidade de Lisboa, doutor summa cum laude em
direito internacional pela UFRGS e professor da Universidade Federal de
Mato Grosso (UFMT).
Revista Consultor Jurídico, 19 de novembro de 2013
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