Noticia
MORTE NO METRÔ
Às Reginas, a Paz (e os Direitos)!
(*) Jorge Luiz Souto Maior
Chegou ao meu conhecimento que a Sra. Regina da Silva Paz, 39 anos,
auxiliar de limpeza, trabalhadora terceirizada, prestando serviços no
Metrô de São Paulo, na madrugada do dia 05 de janeiro passado, foi
encontrada morta em área destinada ao armazenamento na Estação Santa
Cruz.
O Sindicato dos Metroviários, em ato que merece todo o elogio, tornou o
fato público e está em campanha por algo que pode parecer a muitos
bastante banal: que se apurem as circunstâncias do fato, para que se
possam medir responsabilidades. Mas tem enfrentado resistência.
Essa situação revela duas características da realidade brasileira, que, infelizmente, ainda insistem em nos afrontar.
Primeiro, que tudo se considera dentro da normalidade quando os
excluídos se mantêm excluídos, numa condição de invisibilidade e,
segundo, que qualquer tentativa de alteração desse quadro salta aos
olhos como um assalto à normalidade, como ato que tende a incomodar e a
atrapalhar a paz estabelecida.
Essa paz, no entanto, tem sido baseada no silêncio e no medo, que geram
uma quase necessidade de isolamento, alimentando a falta de
solidariedade, o individualismo, enfim.
Ora, a história de Regina não foge do padrão de normalidade a que estão
submetidos milhões de trabalhadores brasileiros, cujo sobrenome é o
mesmo, Silva, e isso há muitas e muitas décadas.
Pessoas
que são excluídas de uma formação educacional de qualidade, que na
infância passam privações de toda espécie e que depois, para sobreviver,
entrando no mercado de trabalho, precisam se submeter ao trabalho
precarizado, desprovido de direitos, tendo ainda que enfrentar,
diariamente, como fruto de uma política urbana que as conduz às
periferias das cidades, onde o Estado só chegue perifericamente, o drama
de uma falência estrutural do transporte público, que prioriza o
interesse econômico e se vale da precarização do trabalho.
Regina,
além disso, era mulher e mãe de dois filhos, estando, por isso, também
submetida a suportar as cargas da pressão psicológica de uma sociedade
em grande parte ainda machista e que tenta impor, a todo o tempo, à
mulher, uma posição inferiorizada, ainda mais quando esta acumula a
condição de trabalhadora, tendo que suportar os efeitos da chamada
“dupla pegada”.
As
Reginas, passando por toda essa enorme dificuldade, estão por aí, mas o
normal é que estejam sem que se perceba que estão. O normal é que, mais
ainda, não contestem essa situação e que, mantendo o padrão da
normalidade, sendo irrelevantes os seus problemas pessoais no que se
referem à família, à moradia e à saúde, estejam todo dia no emprego no
horário marcado e que cumpram a sua obrigação de trabalhar e que cumpram
também, mais tarde, os seus deveres em casa, ainda que seus direitos,
consagrados em diversos documentos internacionais de Direitos Humanos e
na nossa Constituição, não sejam respeitados por aqueles que, incluindo o
Estado, com elas interagem.
Mas,
eis que o corpo de Regina, contrariando a lógica mecanizada, em ato de
revolta, resolveu assumir a sua condição humana e faleceu, exatamente no
local onde a força de trabalho de Regina era utilizada de uma tal forma
que sequer parecia que do corpo de Regina advinha.
Regina, então, perdeu a vida, mas assim pôde ser vista...
Ocorre
que essa “anormalidade” da compreensão de sua existência, na concepção
daqueles que da “normalidade” da invisibilidade se beneficiam, tende a
ser desconstruída, rapidamente, para que outras Reginas não sejam
vistas. Foi assim, por exemplo, que alguns anos atrás na USP o corpo de
um trabalhador terceirizado, morto nas dependências de uma unidade da
USP, foi retirado rapidamente do local para que ninguém o visse, sendo
que como elemento adicional à tragédia, os outros empregados
terceirizados foram obrigados a executar o serviço de “limpar” o local.
Pois
bem, no presente momento, o mínimo que se exige, para que Regina da
Silva, enfim, tenha paz, e para que tantas outras Reginas possam viver, é
que o fato não seja desconsiderado. Que se apure, em toda a sua
amplitude, o quanto as condições de um trabalho precarizado, inserido na
lógica produtiva de grandes conglomerados econômicos, sem direitos, com
baixos salários, com elemento de segregação e integrado da insegurança
de constantes transferências, de recusas de atestados médicos e da
velada ameaça do desemprego, acompanhado das enormes dificuldades
sócio-culturais-econômicas, que assolam os trabalhadores brasileiros,
contribuíram para o ocorrido.
Não
há de se considerar que o normal é seguir tudo como estava, encarando o
fato como mera fatalidade ou buscando, até, quem sabe, um argumento
para culpar a vítima. A apuração requerida pelo Sindicato se impõe,
mesmo que seja, meramente, para que os próprios trabalhadores, como um
todo, não só terceirizados, refletindo a respeito, se vejam na posição
em que Regina viveu e em que seu corpo foi encontrado...
São Paulo, 31 de janeiro de 2014.
(*) Jorge Souto Maior é Professor livre-docente da Faculdade de Direito da USP, Juiz do trabalho e Membro da AJD.
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