Luiz Moreira: Dirceu como trampolim eleitoral de Joaquim Barbosa
publicado em 15 de fevereiro de 2014 às 13:01
Luiz
Moreira: “O julgamento da AP470 foi utilizado por Joaquim Barbosa como
plataforma eleitoral e como arma para, com a criminalização do
PT, conquistar vitórias eleitorais”
por Conceição Lemes
O julgamento da Ação Penal 470 (AP 470), o chamado mensalão, foi marcado por arbitrariedades, infrações à Constituição vigente.
Os
réus foram condenados sem direito ao duplo grau de jurisdição, sem
provas. Afora, algumas vozes isoladas, os advogados do país e suas
associações assistiram tudo calados.
“Vivemos o coroamento de uma época”, alerta em entrevista exclusiva ao Viomundo
Luiz Moreira, professor de Direito Constitucional e Conselheiro
Nacional do Ministério Público (CNMP), indicado pela Câmara dos
Deputados. ”Essa supremacia do Judiciário vem sendo desenhada desde a
abertura política e se cristalizou com a promulgação da Constituição de
1988.”
Com
as suas decisões na AP 470, o ministro-relator Joaquim Barbosa,
presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), levou a supremacia
judicial aos últimos limites.
Hoje, em matéria de capa da revista Veja, diz: ”Acho que chegou a hora de eu sair”.
Justamente
na semana que antecede o julgamento dos embargos infringentes da AP
470, que pode reduzir a pena de vários condenados, entre os quais a de
José Dirceu, ex-ministro e ex-presidente do PT, e de José Genoino,
ex-deputado federal e ex-presidente do PT.
“Isso demonstra
que o julgamento da Ação Penal 470 foi utilizado como plataforma
eleitoral e como arma para, com a criminalização do PT, conquistar
vitórias eleitorais”, afirma Luiz Moreira. “Os principais quadros do PT
foram usados como troféus.”
”
Quando Joaquim Barbosa afirma que ’é chegada a hora de sair’, ele
desnuda o propósito de utilizar José Dirceu como trampolim para seu
projeto eleitoral. Disso se pode antever, com bastante plausibilidade,
que um dos motes de sua campanha será: ‘enquanto fui o relator mantive
José Dirceu preso’”, denuncia Moreira.
“O
julgamento dos embargos infringentes não pode ocorrer nessas
circunstâncias. Algum dos ministros do STF precisa pedir vista e impedir
que o Supremo continue a ser utilizado como instrumento de promoção
eleitoral”, alerta Moreira.
Segue a íntegra da nossa entrevista.
Viomundo
— O ministro Joaquim Barbosa declara à Veja desta semana: ‘acho que já
chegou a hora de sair’. Qual o significado dessa afirmação?
Luiz Moreira
— Sinaliza que ele pretende mesmo disputar as eleições de 2014.
Demonstra que o julgamento da Ação Penal 470 foi utilizado como
plataforma eleitoral e como arma para, com a criminalização do PT,
conquistar vitórias eleitorais.
Viomundo — Como isso se efetivou?
Luiz Moreira – Todos
os passos do julgamento da AP 470 foram milimetricamente ajustados ao
calendário eleitoral, além de ser acompanhado de atos isolados que se
conectavam à produção de manchetes. Tudo isso tinha e tem como propósito
produzir as condições para que Joaquim Barbosa fosse candidato.
Viomundo — Por isso Joaquim Barbosa marcou o julgamento dos embargos infringentes para esta semana?
Luiz Moreira
— Este julgamento não pode ocorrer nessas circunstâncias. Algum dos
ministros do STF precisa pedir vista e impedir que o Supremo continue a
ser utilizado como instrumento de promoção eleitoral.
Viomundo –O que ocorreu?
Luiz Moreira --
Houve uma clara associação entre Joaquim Barbosa e Roberto Gurgel
[ex-procurador-geral da República] para condenar os principais quadros
do PT e com isso possibilitar a ascensão de candidatos ligados a uma
espécie de messianismo patriótico cujo propósito é resolver os problemas
da sociedade com a cartilha do direito penal máximo. Por isso, a única
bandeira desse messianismo é o combate à corrupção.
A
estratégia é clara: constrói-se a surrada bandeira de que no Brasil a
corrupção é generalizada para se produzir candidaturas oriundas do
Ministério Público.
Viomundo –Quer dizer que o combate à corrupção é o mote desse projeto?
Luiz Moreira --
Sim. Primeiro, há o projeto de criminalização da política, com a
consequente entronização dos órgãos de controle. O passo seguinte é a
candidatura dos quadros que desqualificaram os políticos para assumirem
seus lugares.
Viomundo — Por isso a judicialização da política?
Luiz Moreira — No caso do PT, os seus principais quadros foram utilizados como troféus.
O
caso de José Dirceu, ex-ministro e ex-presidente do PT, é o mais
escandaloso. Joaquim Barbosa impede até que ele trabalhe, condição
condizente com sua condenação ao regime semiaberto. E, após cassar uma
decisão do Ministro Ricardo Lewandowski, ele pauta o julgamento dos
embargos infringentes.
Viomundo — Nesse caso, o que pretende Joaquim Barbosa?
Luiz Moreira
— Quando ele afirma que “é chegada a hora de sair”, ele desnuda o
propósito de utilizar José Dirceu como trampolim para seu projeto
eleitoral. Disso se pode antever, com bastante plausibilidade, que um
dos motes de sua campanha será: “enquanto fui o relator mantive José
Dirceu preso”.
Viomundo
— Os réus Ação Penal 470 foram condenados sem direito ao duplo grau de
jurisdição, sem provas. Afora, algumas vozes isoladas, os advogados do
país e suas associações assistiram tudo calados. O que está acontecendo?
Luiz Moreira
–Vivemos o coroamento de uma época. Essa supremacia do Judiciário vem
sendo desenhada desde a abertura política e se cristalizou com a
promulgação da Constituição de 1988.
Viomundo –Por quê?
Luiz Moreira –Os
políticos fizeram a Constituição vigente. Aqueles que foram perseguidos
pela ditadura civil-militar conquistaram a redemocratização e essa
vitória política resultou na Constituição de 1988, uma nova Carta
política.
Só
que a Constituição acabou sendo transformada em documento
exclusivamente jurídico. Como forma de tutelar a soberania popular, a
conquista política de uma geração foi assimilada por um poder aliado da
ditadura. O Judiciário!
Esse
processo ideológico de apropriação da legitimidade que brota da
democracia tentou preservar a matriz conceitual de um Estado que sempre
se organizou sem a participação popular.
Esse
movimento, altamente sofisticado, criou as condições para o
estabelecimento de uma supremacia judicial que, ao longo dos anos,
resultaria na criminalização dos partidos e do Congresso Nacional. É o
que estamos vendo hoje.
Viomundo — Explique melhor.
Luiz Moreira
–No Brasil, a figura do constituinte no Brasil é praticamente uma
reminiscência. É como se fosse algo fora da sociedade. Nenhum dos
constituintes detém prestígio social por essa condição.
Quando
se fala em Constituição invariavelmente nos lembramos do Supremo
Tribunal Federal. Esse processo de primazia do Judiciário se inicia com a
permuta da política pelo direito ocorrido após a promulgação da
Constituição.
Em
seguida há algo que passa a ser repetido como um mantra: “o Supremo é o
guardião da Constituição”, como se a política não tivesse nenhuma
participação na constitucionalidade, no cumprimento das leis, no
cumprimento das regras contidas na Constituição.
Viomundo — Mas o Supremo não é o guardião da Constituição?!
Luiz Moreira --
É um dos guardiães! O sistema jurídico brasileiro é complexo e nele há
duas etapas para o controle de constitucionalidade. A prévia, exercida
pelas Comissões de Constituições e Justiça do Legislativo e outra, a posteriori. Na última, ocorre uma divisão de tarefas entre o Executivo e o Judiciário.
Viomundo
— O senhor diz que a Constituição é um instrumento político, mas acabou
se transformando em instrumento jurídico. Como se deu esse processo?
Luís Moreira
–Trata-se de um movimento mundial que vem desde o final da Segunda
Guerra. O pós-guerra se caracterizou também pela mitigação das
representações parlamentares. Houve o enfraquecimento dos Parlamentos e a
consequente entronização dos Tribunais Constitucionais, que significou o
afastamento do povo das tomadas de decisão, pois as deliberações
passaram a ser tomadas pelas instâncias burocráticas.
Com
os Tribunais Constitucionais foi constituída uma espécie de clube, que
passou a tutelar os diversos interesses nacionais, eliminando a
pluralidade que os Parlamentos representam. Não é por acaso que o
Tribunal Constitucional da Alemanha é inaugurado na ocupação da Alemanha
pelas forças aliadas, com domínio dos norte-americanos.
Então,
foi disseminado, como uma onda, que o Direito e o Judiciário seriam as
únicas instituições capazes de conduzir os países ao progresso. O
exemplo mais acabado disso são os últimos episódios da União Européia,
na qual as decisões passam ao largo dos cidadãos. Há cada vez menos
democracia e sobra burocracia a tutelar a sociedade.
Viomundo — Só que, ao mesmo tempo, assistimos à crescente judicialização da política.
Luiz Moreira
–Exatamente. Essa judicialização é o deslocamento das decisões da
política para o Judiciário. Em consequência, as decisões perdem
legitimidade, pois deixam de ser deliberações tomadas pelos
representantes do povoe passam a ser tomadas pelos ministros do Supremo.
Viomundo — Qual o risco disso para a democracia?
Luiz Moreira --
Há a substituição da soberania do povo, da democracia, por um poder
burocrático. A judicialização da política é um problema para a
democracia, pois ela transforma o cidadão em mero expectador.
É
curioso que a diminuição da Política pelo Direito ocorra fortemente
após a Constituição de 1988. É paradoxal, pois isso ocorre imediatamente
após uma ditadura civil-militar, na qual os instrumentos de dominação
eram toscos, embora fosse sofisticado o aparato jurídico.
Com
a redemocratização era preciso alterar os instrumentos de dominação,
desde que se mantivesse inalterada a fonte de domínio, ou seja, o
projeto de democracia sem povo tinha que permanecer, por isso a política
continuou mitigada. Só que agora o Ministério Público e o Judiciário
ocupariam o lugar antes ocupado pelos generais.
O
apogeu desse sistema ocorre com a substituição do poderio militar pela
toga, pois as decisões migraram dos quartéis para os palácios de
justiça.
Viomundo — Como isso foi se dando na prática?
Luiz Moreira
— Existem alguns marcos. Um deles é a emenda 45, aquela que instituiu a
Reforma do Judiciário, pois com ela ocorreu um equívoco conceitual.
Veja
a contradição. Essa reforma se inicia com um discurso do presidente
Lula, em que ele afirma que “o Judiciário é uma caixa preta” .Só que a
reforma do Judiciário traiu aquilo que Lula pretendia.
Viomundo — Por quê?
Luiz Moreira -- Se o Judiciário é uma caixa preta, não é reforçando as estruturas judiciárias que se abrirá a caixa.
O
que a Emenda 45 fez? Criou os conselhos nacionais de Justiça (CNJ) e do
Ministério Público (CNMP). Mas isso é muito pouco.O Judiciário e o
Ministério Público têm ampla maioria nesses dois conselhos, fazendo
prevalecer a visão corporativista de seus membros. No CNJ e no CNMP, a
representação da sociedade jamais assumirá postos dirigentes.
Quando
o presidente Lula dizia, com razão, que o Judiciário era uma caixa
preta, ele defendia com isso abrir o judiciário ao controle social.
E
o que aconteceu foi justamente o contrário! A emenda constitucional 45
que criou o CNJ e o CNMJ também criou a súmula vinculante.
O parágrafo 2 da emenda 45 estabelece:
O § 2º As
decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal
Federal, nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações
declaratórias de constitucionalidade produzirão eficácia contra todos e
efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e
à administração pública direta e indireta, nas esferas federal,
estadual e municipal.
Ou seja, toda a administração pública, nos três níveis de poder, passou a se submeter ao STF.
Portanto,
ao invés de submeter o Judiciário ao controle social, a emenda 45 acaba
por criar uma supremacia judicial sem precedentes no Brasil, dotando o
Supremo Tribunal Federal de poderes semelhantes ao exercidos por D.
Pedro II, no Império.
O
que acontecia no Império?Quando havia uma questão controvertida entre
os três poderes cabia ao Imperador resolver. Atualmente, quando há uma
controvérsia, o Supremo Tribunal Federal resolve a questão. O problema é
que a vida não cabe dentro de uma decisão judicial.
Viomundo
— Como ficam as arbitrariedades cometidas pelo ministro Joaquim Barbosa
até na prisão dos condenados da Ação Penal 470? O ex-ministro José
Dirceu (PT) tem direito ao regime semiaberto, mas três meses após a
prisão continua no fechado. Já o ex-deputado federal Roberto Jefferson,
delator do mensalão, até hoje não teve a prisão decretada… Barbosa disse
que o ex-deputado federal João Paulo Cunha (PT) seria preso, mas viajou
sem assinar o pedido de prisão…
Luiz Moreira — A
postura do ministro Joaquim Barbosa no caso do deputado João Paulo
Cunha é típica de guerra psicológica. O relator proclama o trânsito em
julgado do processo contra João Paulo. Ou seja, não há mais recurso a
ser julgado. João Paulo, então, viaja a Brasília, para ser preso. Só que
o ministro Joaquim Barbosa viaja e não assina o pedido de prisão… Isto é
absolutamente tosco.
É
a manifestação de um arbítrio sem precedentes, pois essa absoluta falta
de parâmetros é condizente com períodos de exceção, quando o poder
estatal é exercido sem limites.
Viomundo
— Ironicamente, João Paulo Cunha era presidente da Câmara dos Deputados
na época em que a súmula vinculante foi aprovada e promulgada. Na
época, não se tinha essa percepção? Ou o Congresso votou subjugado pelo
lobby do Judiciário?
Luiz Moreira — O Congresso dotou o Judiciário de todas as condições para exercer o papel contra majoritário.
Eu
explico. Como representante da sociedade brasileira, o Congresso se
move pela formação de consensos majoritários. Essa é a expressão da
Política, ou seja, o Parlamento expressa a vontade da maioria. Desse
modo, coube ao Legislativo constituir um órgão ao qual compete defender a
minoria do arbítrio da maioria.
No
entanto, aconteceu de o STF avocar pra si a condição de órgão
majoritário e passar a disputar a opinião pública, fomentando e forjando
consensos. É exatamente o que ocorreu com a criação da súmula
vinculante.
Viomundo – A sua visão sobre a súmula vinculante é compartilhada pelos juristas?
Luiz Moreira --
Essa supremacia judicial realiza um projeto da elite brasileira de
submeter a democracia a um controle burocrático. Quanto aos juristas, ao
que parece o sistema atual agrada muitos. A súmula vinculante é uma
tentativa muito clara de blindar a burocracia. Isso é muito parecido
com o que acontece no Brasil, em geral.
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