Brasil, EUA e o "hemisfério ocidental"
Por José Luís Fiori
"As
terras situadas ao sul do Rio Grande constituem um mundo diferente do
Canadá e dos Estados Unidos. E é uma coisa desafortunada que as partes
de fala inglesa e latina do continente tenham que ser chamadas
igualmente de América, evocando similitudes entre as duas que de fato
não existem". N. Spykman, "America's Strategy in World Politics, Harcourt, Brace abd Company, New York, 1942, p: 46
Tudo
indica que os Estados Unidos serão o principal contraponto da política
externa brasileira, dentro do Hemisfério Ocidental, durante o século
XXI. E quase ninguém duvida, também, que os EUA seguirão sendo por muito
tempo a principal potência militar e uma das principais economias do
mundo. Por isto é fundamental compreender as configurações geopolíticas
da região e a estratégia que orienta a política hemisférica americana
deste início de século.
Ao
norte do continente, o poder americano foi, é e seguirá sendo
incontrastável, garantindo-lhe fronteiras continentais absolutamente
seguras. Além disto, a assimetria de poder dentro da América do Norte é
de tal ordem que o Canadá e o México tendem a convergir cada vez mais,
atraídos pela força gravitacional do poder econômico e militar dos EUA. O
que não significa, entretanto, que o Canadá e o México ocupem a mesma
posição junto aos EUA e dentro do tabuleiro geopolítico e econômico
regional, apesar dos três países participarem do "Tratado
Norte-Americano de Livre Comercio" (Nafta) desde 1993.
Em relação aos países ao sul da Colômbia e da Venezuela, objetivo era impedir que surgisse um polo alternativo de poder
O
Canadá ocupa uma posição única, como ex-colônia e ex-domínio britânico,
que, depois da sua independência e da Segunda Guerra Mundial,
transferiu-se para a órbita de influência direta dos EUA,
transformando-se em sócio comercial, aliado estratégico e membro do
sistema de defesa e informação militar dos povos de "língua inglesa",
comandado pelos EUA, e composto pela Inglaterra, Austrália e a Nova
Zelândia. Neste contexto, o México ocupa apenas a posição de enclave
militar dos EUA, uma espécie de "primo pobre", de "fala latina", ao lado
das potências anglo-saxônicas.
Mais
do que isto, o México é hoje um país dividido e conflagrado por uma
verdadeira guerra civil que escapa cada vez mais ao controle do seu
governo central, mesmo depois do acordo de colaboração militar assinado
com os EUA em 2010. E mesmo com relação ao Nafta, a economia mexicana se
beneficiou em alguns poucos setores dominados pelo capital americano,
como automobilística e eletrônica, mas ao mesmo tempo, nestes últimos
vinte anos, o México foi o único dos grandes países latino-americanos em
que a pobreza cresceu, atingindo hoje, 51,3% da sua população. Hoje a
economia mexicana é inseparável da americana e a política externa do
país tem escassíssimos graus de liberdade, atuando quase sempre como
ponta de lança da política econômica internacional dos EUA, como no caso
explícito da "Aliança do Pacífico".
Do
ponto de vista estritamente geográfico, a América do Norte inclui o
istmo centro-americano, que Nicholas Spykman coloca ao lado dos países
caribenhos, e da Colômbia e Venezuela, dentro de uma mesma zona de
influência americana, "onde a supremacia dos EUA não pode ser
questionada. Para todos os efeitos trata-se um mar fechado cujas chaves
pertencem aos EUA o que significa que ficarão sempre numa posição de
absoluta dependência dos EUA" (N.S, p: 60). O que explica as 15 bases
militares dos EUA, existentes na América Central e no Caribe. Foi uma
região central na 2ªGuerra Fria de Ronald Reagan e será muito difícil
que se altere a posição americana nas próximas décadas, muito além da
das "dissidências" cubana e venezuelana.
Por
último, a política externa americana diferencia claramente os países
situados ao sul da Colômbia e da Venezuela, onde seu principal objetivo
estratégico foi sempre impedir que surgisse um polo alternativo de poder
no Cone Sul do continente, capaz de questionar a sua hegemonia
hemisférica. Com relação a estes países, os EUA sempre utilizaram a
mesma linguagem, com duas tônicas complementares: a dos acordos
militares bilaterais e a das zonas de livre comércio.
Os
acordos militares começaram a ser assinados no fim do século XIX e a
primeira proposta de uma zona pan-americana de livre comércio foi
apresentada pelo presidente Grover Cleveland, em 1887, um século antes
da Alca, proposta em 1994 e rejeitada em 2005, pelos principais países
sul-americanos. Não existe uma relação mecânica entre os fatos, mas
chama atenção que pouco depois desta rejeição os EUA tenham reativado
sua IV Frota Naval, com objetivo de proteger seus interesses no
Atlântico Sul. A este propósito cabe lembrar o diagnóstico e a proposta
de Nicholas Spykman (1893-1943), o teórico geopolítico que exerceu maior
influência sobre a política externa dos EUA no século XX: "fora da
nossa zona imediata de supremacia americana, os grandes estados da
América do Sul (Argentina, Brasil e Chile) podem tentar contrabalançar
nosso poder através de uma ação comum[...] e uma ameaça à hegemonia
americana nesta região do hemisfério (a região do ABC) terá que ser
respondida por meio da guerra" (N.S p: 62 e 64). Estes são os termos da
equação, e a posição americana foi sempre muito clara. O mesmo não se
pode dizer da política externa brasileira.
José
Luís Fiori, professor titular de economia política internacional da
UFRJ, é autor do livro "O Poder Global", da Editora Boitempo, e
coordenador do grupo de pesquisa do CNPQ/UFRJ "O Poder Global e a
Geopolítica do Capitalismo". Escreve mensalmente às quartas-feiras.
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