(*) Jorge Luiz Souto Maior
1. O contexto histórico
A
ideia de um país do Carnaval surge, na década de 30, com o propósito
varguista de construir uma identidade nacional, buscando enaltecer o que
o brasileiro tinha de próprio e positivo, deixando de revelar, no
entanto, o objetivo em torno da formatação de uma sociedade capitalista,
que pressupunha a constituição de uma nova classe operária com esse
brasileiro, um sujeito naturalmente ordeiro e pacífico, e que, com a
evolução dos tempos, embora ainda festivo e alegre, se apresentava como
disciplinado e trabalhador, uma espécie de malandro regenerado, que
portava virtudes religiosas e propensão ao casamento, pronto, portanto,
para se integrar ao projeto de enriquecimento da Nação, contrariamente
aos operários estrangeiros, que portavam ideias perniciosas à ordem
brasileira.
O
Carnaval, como veículo de aproximação com o povo, seria apropriado para
que se fizesse um elogio de valores que interessavam ao governo.
Mas,
como observa Eliana de Freitas Dutra, “Ainda assim, o carnaval popular
seguiu sua trilha de riso, deboche e alegria na animada capital da
República. Tributário de outras festas populares, como a Festa da Penha,
o Carnaval conservou a herança dos ritmos trazidos da África pelos
escravos, levados para essa festa popular religiosa. Os sambas de roda
vindos da Bahia, tendo sobrevivido nos terreiros de samba, também
migraram para o Carnaval, que ocupava locais como a Praça Onze, onde se
divertiam as gentes dos subúrbios e desfilavam os blocos de sujos, os
mascarados e os zé-pereiras, com seus tambores e bombos.”[1]
Mesmo
com toda propaganda, a música de boa parte de sambistas continuou se
desenvolvendo, isso porque estava envolto em um dado cultural mais
profundo, tendo sido integrado ao cenário das cidades, ecoando, também, o
grito de liberdade dos ex-escravos. “A musicalidade circunscrita ao
latifúndio – em si, expressão acabada de um documento de barbárie –, ao
se libertar com a Abolição, invade a cidade: um grito ecoa pela Nação,
animando a festa (carnaval), embriagando a atmosfera urbana com uma
música popular envolvente, de grande ressonância nas diversas nervuras
da sociedade.” 1
No
samba, os protagonistas, vítimas da divisão escravista do trabalho,
repudiam o trabalho explorado, promovendo uma inversão, onde “o operário
é a principal personagem à sombra, ofuscado pela ruidosa e alegre
consagração da figura do malandro.” [2]
O
Carnaval, assim, é uma festa que impõe a desordem num ambiente em que a
ordem segrega. É a busca de outra ordem, outra harmonia, o que foi
difundido, magistralmente, por Noel Rosa, seguindo a trilha traçada por
João da Baiana, Donga, Sinhô, Caninha, Heitor dos Prazeres, Pixinguinha,
sendo acompanhado no nordeste por Jackson do Pandeiro, em São Paulo,
por Adoniram Barbosa e, no Rio, por Moreira da Silva, introdutor do
breque, “um dos recursos mais maliciosos da canção brasileira, portador
de distanciamento irônico” [3] e que proclamou: “Estou cansado dessa vida de otário/Afinal o meu salário já não chega para mim”.
Noel Rosa, que assumiu a postura de vida boêmia, percebeu bem a supressão do humano pelo trabalho fabril, que se procurava então estimular, como revelado em Três Apitos, de 1933:
Quando o apito da fábrica de tecidos
Vem ferir os meus ouvidos
Eu me lembro de você
Mas você anda
Sem dúvida bem zangada
Ou está interessada
Em fingir que não me vê
Você que atende ao apito de uma chaminé de barro
Porque não atende ao grito
Tão aflito
Da buzina do meu carro
Você no inverno
Sem meias vai pro trabalho
Não faz fé no agasalho
Nem no frio você crê
Mas você é mesmo artigo que não se imita
Quando a fábrica apita
Faz reclame de você
Nos meus olhos você lê
Que eu sofro cruelmente
Com ciúmes do gerente
Impertinente
Que dá ordens a você
Sou do sereno poeta muito soturno
Vou virar guarda-noturno
E você sabe porque
Mas você não sabe
Que enquanto você faz pano
Faço junto ao piano
Estes versos pra você
O
problema é que na relação simbiótica entre sambistas e governo este
aprendeu a se valer do “jogo de cintura” para dissimular,
propositalmente, a realidade, apropriando-se da cultura da malandragem.
Ou seja, promovendo aquilo que se poderia chamar de uma “malandragem
oficial” e ao longo dos anos, submetendo o malandro do povo ao estágio
extremo da necessidade e da marginalidade, impondo-lhe não apenas a
miséria, mas também, repressão institucionalizada, que se intensificou
no período da ditadura civil-militar de 1964 em diante, acabou por
manter-se como a única malandragem possível no cenário nacional, como
denunciado por Chico Buarque, em 1977-1978, na música, Homenagem ao malandro, feita para a sua peça, Ópera do Malandro:
Eu fui fazer um samba em homenagem
À nata da malandragem
Que conheço de outros carnavais
À nata da malandragem
Que conheço de outros carnavais
Eu fui à Lapa e perdi a viagem
Que aquela tal malandragem
Não existe mais
Que aquela tal malandragem
Não existe mais
Agora já não é normal
O que dá de malandro regular, profissional
Malandro com aparato de malandro oficial
Malandro candidato a malandro federal
Malandro com retrato na coluna social
Malandro com contrato, com gravata e capital
Que nunca se dá mal
O que dá de malandro regular, profissional
Malandro com aparato de malandro oficial
Malandro candidato a malandro federal
Malandro com retrato na coluna social
Malandro com contrato, com gravata e capital
Que nunca se dá mal
Mas o malandro pra valer
- não espalha
Aposentou a navalha
Tem mulher e filho e tralha e tal
- não espalha
Aposentou a navalha
Tem mulher e filho e tralha e tal
Dizem as más línguas que ele até trabalha
Mora lá longe e chacoalha
Num trem da Central
Mora lá longe e chacoalha
Num trem da Central
Em
suma, o Carnaval se institucionalizou e mais tarde passou a ser objeto
importante da lógica da produção capitalista e a classe operária
brasileira, voltada a um trabalho cujo proveito não lhe permite concreta
ascensão social, foi forjada e expulsa do domínio ideológico das festas
populares.
Tudo
isso se fez, no entanto, dentro da característica da cultura do
disfarce, que restou, concretamente, como o caldo cultural do período. A
institucionalização estatal da malandragem, além disso, foi incorporada
pela classe dominante, fazendo com que as relações sociais se
desenvolvessem na perspectiva da dissimulação. É comum, pois, no
percurso histórico, verificar a classe dominante proferindo discursos
sobre questões sociais, partindo de seu modo de ver o mundo, mas
fazendo-o de tal forma que pareça estar, meramente, reproduzindo os
interesses da classe dominada e não raro, utilizando-se dos meios de
comunicação em massa, faz com que essa sua racionalidade seja posta nas
falas dos trabalhadores e excluídos em geral.
É
assim, por exemplo, que se tenta fazer crer que os direitos sociais são
prejudiciais aos seus titulares, por serem artificiais, já que a
natureza das coisas é determinada pelas possibilidades econômicas, que
não podem ser alterada já que o “status quo” precisa ser preservado, e
que, de fato, deixar de aplicá-los é um benefício que se faz em prol do
bem-estar dos trabalhadores. Utilizam, pois, da estratégia básica da
malandragem, que é se apropriar da dialética entre ordem e desordem,
pervertendo a regra do jogo e alterando até mesmo a perspectiva do
outro.
O
capitalismo amadureceu no Brasil por esses fatores, tendo sido criado
um exército de mão-de-obra para satisfazer as necessidades da reprodução
do capital, atendendo, inclusive, interesses econômicos internacionais,
mas sem permitir a percepção dessa mudança, mantendo-se a visão do
Brasil como o país da natureza abundante, onde tudo que se planta dá,
que não está integrado por classes, que conta com um povo coeso e
harmônico, de convivência pacífica, numa lógica corporativa, mesmo que
não exista e se leve adiante um projeto de sociedade, imperando, em
concreto, a ideologia do individualismo e ao liberalismo.
Um
país que se apresenta formado por pessoas pacíficas, ordeiras, tementes
a Deus, felizes e irreverentes, mas que, em concreto, se desenvolve por
intermédio de separação de classes com profunda desigualdade, que
reverbera valores como o racismo e o machismo, e que se mantém por meio
da violência institucionalizada, tratando como desajustados, marginais,
os que tentam relevar e superar as injustiças sociais e as dissimulações
em que estão baseadas.
Um
país no qual a ordem jurídica, que garante valores como a dignidade e a
justiça social, chegando ao ponto de vincular o direito de propriedade
ao cumprimento de sua função social, é apresentada como obra-prima da
racionalidade, mas, que, nem de longe, enfrenta o desafio de atingir, em
concreto, a realidade. As leis trabalhistas, que estamos estudando,
foram criadas, mas nunca com o propósito real de serem aplicadas...
A
violência da preservação das desigualdades se produz, repetidas vezes,
por formas veladas, tentando fazer crer que toda busca de alterar a
realidade social representa a instalação do caos, uma forma de quebrar a
harmonia entre as classes, fazendo-se supor a felicidade de quem está
sendo explorado e para quem, inclusive, faz bem continuar sendo
explorado, mesmo com supressão de direitos.
O
ataque recorrente que se faz à legislação trabalhista se insere neste
contexto. Ora, os ataques partem exatamente daqueles que mais se
beneficiam da legislação em questão, eis que serve para manter sob
controle a classe operária, evidenciando, pois, uma atitude dissimulada,
esperta, para se opor, de antemão, a possíveis reivindicações dos
trabalhadores por melhores condições de trabalho, constituindo ao mesmo
tempo, de forma até contraditória, a falência entre nós de uma
racionalidade liberal, deixando transparecer, mesmo sem querer, o
resquício escravista e a lógica oligárquica. “Direito ao vagabundo, prá
quê?”
2. O fato e o direito
E
eis que, em março de 2014, trabalhadores brasileiros, na condição mesma
de trabalhadores, garis, resolvem se apresentar na festa do Carnaval e o
fazem da maneira que podem, fazendo greve.
E o que se viu em reação? Bom o que se viu foi o reflexo de toda essa história da institucionalização esperta da exclusão.
Anunciada
a intenção dos garis em fazer greve, para auferir melhores condições de
trabalho, o sindicato e o empregador se anteciparam e fizeram um
acordo, em 03 de março. Esse acordo, segundo afirmam os garis, foi bem
aquém das pretensões da categoria. Os garis resolveram, então, deliberar
pela greve e tiveram que fazê-lo sem a presença do sindicato, o qual já
havia se posicionado sobre o tema.
A
partir daí o que se viu foi a utilização de todo o aparato estatal para
destruir os trabalhadores, até o ponto de alguns deles terem sido
chamados de “marginais e delinqüentes” pelo prefeito da cidade do Rio de
Janeiro.
Ora,
enquanto os garis se submetem a trabalhar, realizando uma atividade
extremamente dura, durante várias horas por dia, ganhando R$803,00 por
mês, chacoalhando nos trens da Central, são considerados cidadãos
ordeiros, pacíficos, virtuosos. Alguns desses, inclusive, como se
anunciou, trabalham como gari há 30 (trinta) anos. Mas, se resolvem se
valer da ocasião do advento do Carnaval para pressionar o empregador
para conseguirem mudar um pouco a sua “sorte” na vida, são espertalhões,
“chantagistas”, como afirmou o presidente da COMLURB.
Os
garis, então, ao se revelarem como trabalhadores, com consciência de
classe, deixando de ser figuras alegóricas, espécies de balões de ensaio
para estudos antropológicos, tiveram a oportunidade de perceber a forma
concreta como o Estado, na qualidade de empregador, se relaciona com
trabalhadores.
O
Estado se recusou a conversar e impôs aos garis, por efeito de uma
estratégia jurídica, a volta ao trabalho. Com a recusa, tratou,
imediatamente, de “dispensar”, “mandar embora”, os garis, fazendo-o por
meio de mensagem pelo celular. A tecnologia a serviço da perversidade. E
foi além. Foram utilizados dispositivos, em desuso, do Código Penal,
pertinentes aos crimes contra a organização de trabalho, instituídos,
não por acaso, durante o Estado Novo, para prender dirigentes sindicais
que estavam tentando se opor que colegas furassem a greve.
Com
relação à ação dos garis trabalhadores o Estado agiu rapidamente,
mostrou eficiência, utilizando-se dos instrumentos e instituições
jurídicas à sua disposição para a retomada da ordem, chegando a conduzir
trabalhadores à prisão, sob a pecha de “marginais”. Mas, esse mesmo
Estado não foi eficiente para, primeiro, negociar de boa-fé com os garis
e não consta que tenha demonstrado a mesma eficiência quando os
direitos dos trabalhadores, em geral, deixam de ser respeitados por
alguns empregadores, que insistem em se valer da ilicitude para frustrar
a concorrência e majorarem, indevidamente, os seus lucros.
No
mesmo caderno do Jornal que traz a notícia da greve dos garis, pondo em
destaque um grande foto do lixo nas ruas e a prisão dos “marginais”, há
uma nota, pequena, que informa: “90 mil crianças estão à espera de vaga
em creche em SP”. Claro que se trata de outro Estado da Federação. O
que se está dizendo, e os exemplos seriam inúmeros para ilustração, é
que a eficiência do Estado para reprimir o cidadão que luta por
direitos, visando à melhoria de sua condição social, é inversamente
proporcional quando o assunto é a concretização dos direitos sociais
assegurados, constitucionalmente, a esses mesmos cidadãos.
E, juridicamente falando, está tudo errado.
Primeiro,
o acordo, para ter validade jurídica precisava ter sido submetido à
assembleia dos trabalhadores, já que o preceito democrático é o que
rege, fundamentalmente, nosso Estado de Direito. Essa, ademais, é a
previsão expressa do artigo 612, da CLT: “Os sindicatos só poderão
celebrar Convenções ou Acordos Coletivos de Trabalho, por deliberação de
Assembleia Geral especialmente convocada para esse fim, consoante o
disposto nos respectivos Estatutos, dependendo a validade da mesma do
comparecimento e votação, em primeira convocação, de 2/3 dos associados
da entidade, se se tratar de Convenção, e dos interessados, no caso de
Acordo, e, em segunda, de 1/3 dos mesmos.”
No
caso da greve, ainda que dependa do sindicato para ser deflagrada, não
se pode negá-lo como fato social, respaldado pelo direito, quando haja
distensão notória entre os trabalhadores e a direção do sindicato, até
porque é dever das entidades de representação, dado o preceito
democrático, convocar assembleias para deliberações, sendo que a greve,
nos termos da lei, concretamente, não está condicionada ao
direcionamento da diretoria e sim à vontade da categoria expressa em
assembleia geral, “que definirá as reivindicações da categoria e
deliberará sobre a paralisação coletiva da prestação de serviços”, sendo
certo também que, por ilação lógica, somente a assembleia pode decidir
pelo fim da greve (art. 4º., da Lei n. 7.783/89).
O
acordo feito pela direção do sindicato não vincula, portanto, a
categoria. E, vale reforçar: ainda que a greve se exerça por meio do
sindicato, o direito de greve não pertence ao sindicato, como revela,
expressamente, o artigo 9º., da CF, reproduzido, ipsis literis, no art. 1º., da Lei n. 7.783/89: “É assegurado o direito de greve, competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender.” (grifou-se)
Ao
que consta, assembleia dos trabalhadores, mesmo não tendo sido chamada
pelo sindicato, rejeitou o acordo e deliberou pela greve, não havendo,
portanto, ilegalidade alguma no ato dos trabalhadores de deixarem de
comparecer ao trabalho depois disso, pois essa é, de fato, a essência da
greve, qual seja, a paralisação do trabalho.
Desse
modo, a atitude do prefeito do município do Rio de Janeiro ao
determinar a “dispensa” de trabalhadores, fazendo-o ainda da forma
vexatória como o fez, ou seja, por envio de mensagem pelo celular,
configura uma flagrante ilegalidade, além de ser uma agressão à condição
humana e jurídica dos trabalhadores, atitude que, adotando a própria
lógica argumentativa trazida à tona pelo prefeito, pode ser enquadrada
como ato de “marginal ou delinqüente”, vez que em desrespeito à ordem
jurídica.
Verdade
que há uma decisão judicial, declarando a ilegalidade da greve e
determinando a imediata suspensão do movimento, mas o que consta da
decisão é uma penalidade pecuniária. Ou seja, a determinação de
suspensão da greve “sob pena de multa diária no caso de descumprimento”.
A
jurisprudência trabalhista admite a dispensa por justa causa no caso de
participação em greve declarada abusiva ou ilegal, mas esse efeito,
conforme prevê essa mesma jurisprudência, depende da individualização da
conduta, exigindo-se uma participação ativa e a prática de atos que
possam, em si, quebrar, de forma indelével, o vínculo de boa-fé,
extrapolando, pois, a própria greve, uma vez que a ordem jurídica
internacional é bastante rígida quanto à rejeição de qualquer prática do
empregador que possa se aproximar de uma discriminação sindical. Essa
noção está muito clara no entendimento do TST, no sentido de que: “A
simples adesão ao movimento paredista não constitui falta grave,
porquanto somente atos de violência desencadeados por força desta
paralisação conduzem ao reconhecimento da justa causa”.
Pela
simples ausência ao trabalho, no caso da greve declarada ilegal e,
assim mesmo, somente depois de transitada em julgado a decisão, o
empregador, portanto, poderia, no máximo, efetuar o desconto dos
salários, sendo que uma justa causa somente adviria pelo abandono do
emprego, que exige um completo desinteresse pela continuidade no
trabalho (art. 482, da CLT), do que não se trata, evidentemente.
O
empregador não pode, simplesmente, recusar a dinâmica dialética e
coletiva que se produz na base da categoria dos trabalhadores, efetuando
a dispensa de trabalhadores, com ou sem justa causa, em ato de
represália ou com o propósito de desmantelar e amedrontar a classe
trabalhadora. Oportuno lembrar que a Convenção 98 da OIT, ratificada
pelo Brasil, dispõe que “os trabalhadores deverão gozar de proteção
adequada contra quaisquer atos atentatórios à liberdade sindical em
matéria de emprego”, além da condenação do Brasil junto ao Comitê de
Liberdade Sindical, ocorrida em 2009, em função das dispensas
arbitrárias feitas pelos governos do Rio de Janeiro e de São Paulo por
ocasião de greves dos trabalhadores metroviários (Caso nº 2.646).
A
prática em questão não é apenas ilegal, do ponto de vista das normas de
proteção do direito de organização sindical dos trabalhadores e do
exercício do direito de greve, mas também uma ofensa à condição humana
dos trabalhadores.
Neste
sentido, impõe-se a imediata reintegração desses trabalhadores,
ilegalmente dispensados, sem prejuízo da possibilidade de buscarem,
judicialmente, uma indenização pelo dano moral experimentado. O que não
apagará, de todo modo, mais um caso de violência institucionalizada
contra a classe trabalhadora, que cumpre, portanto, deixar consignada.
Reconhecida
a ilegalidade do ato cometido pelo prefeito da cidade do Rio de
Janeiro, que atingiu, também, a mesma esfera dos crimes contra a
organização do trabalho, as perguntas que se devem fazer os
trabalhadores são: por que, afinal, a polícia não vai lá prender o
prefeito, se ele cometeu o mesmo crime que acusam ter cometido os três
garis? Que folia é essa? Indagações que, aliás, fazem lembrar a
perplexidade exposta na música, Pelo Telefone, de 1917, atribuída à Donga:
O chefe da polícia
Pelo telefone
Manda me avisar
Que na Carioca
Tem uma roleta
Para se jogar
No
caso específico dos garis, a reflexão pode iniciar com uma bela
conversa com Drummond, seguindo texto cuja autoria lhe fora atribuída 4 [4]:
Amigo lixeiro, mais paciência.
Você não pode fazer greve.
Não lhe falaram isto, pela voz
do seu prudente sindicato?
Não sabe que sua pá de lixo
é essencial a segurança nacional?
Você não pode fazer greve.
Não lhe falaram isto, pela voz
do seu prudente sindicato?
Não sabe que sua pá de lixo
é essencial a segurança nacional?
A lei o diz (decreto-lei que
nem sei se pode assim chamar-se,
em todo caso papel forte,
papel assustador). Tome cuidado,
lixeiro camarada, e pegue a pá,
me remova depressa este monturo
que ofende a minha vista e o meu olfato.
nem sei se pode assim chamar-se,
em todo caso papel forte,
papel assustador). Tome cuidado,
lixeiro camarada, e pegue a pá,
me remova depressa este monturo
que ofende a minha vista e o meu olfato.
Você já pensou que descalabro,
que injustiça ao nosso status ipanêmico, lebloniano,
sanconrádico,
barramárico,
se as calçadas da Vieira Souto e outras conspícuas
vias de alto coturno continuarem
repletas de pacotes, latões e sacos plásticos
(estes, embora azuis), anunciando
uma outra e feia festa: a da decomposição
mor das coisas do nosso tempo,
orgulhoso de técnica e de cleaning?
que injustiça ao nosso status ipanêmico, lebloniano,
sanconrádico,
barramárico,
se as calçadas da Vieira Souto e outras conspícuas
vias de alto coturno continuarem
repletas de pacotes, latões e sacos plásticos
(estes, embora azuis), anunciando
uma outra e feia festa: a da decomposição
mor das coisas do nosso tempo,
orgulhoso de técnica e de cleaning?
Ah, que feio, meu querido,
essa irmanar de ruas, avenidas,
becos, bulevares, vielas e betesgas e tatatá
do nosso Rio tão turístico
e tão compartimentado socialmente,
na mesma chave de perfume intenso
que Lanvin jamais assinaria!
essa irmanar de ruas, avenidas,
becos, bulevares, vielas e betesgas e tatatá
do nosso Rio tão turístico
e tão compartimentado socialmente,
na mesma chave de perfume intenso
que Lanvin jamais assinaria!
Veja você, meu caro irrefletido:
a Rua Cata-Piolho, em Deus-me-livre,
equiparada à Atlântica Avenida
(ou esta àquela)
por idêntico cheiro e as mesmas moscas
sartrianamente varejando,
os restos tão diversos uns dos outros,
como se até nos restos não houvesse
a diferença que vai do lixo ao luxo!
a Rua Cata-Piolho, em Deus-me-livre,
equiparada à Atlântica Avenida
(ou esta àquela)
por idêntico cheiro e as mesmas moscas
sartrianamente varejando,
os restos tão diversos uns dos outros,
como se até nos restos não houvesse
a diferença que vai do lixo ao luxo!
Há lixo e lixo, meu lixeiro.
O lixo comercial é bem distinto
do lixo residencial, e este, complexo,
oferece os mais vários atrativos
a quem sequer tem lixo a jogar fora.
Ouço falar que tudo se resume
em você ganhar um pouco mais
de mínimos salários.
Ora essa, rapaz: já não lhe basta
ser o confiscável serviçal
a que o Rio confere a alta missão
de sumir com seus podres, contribuindo
para que nossa imagem se redobre
de graças mil sob este céu de anil?
O lixo comercial é bem distinto
do lixo residencial, e este, complexo,
oferece os mais vários atrativos
a quem sequer tem lixo a jogar fora.
Ouço falar que tudo se resume
em você ganhar um pouco mais
de mínimos salários.
Ora essa, rapaz: já não lhe basta
ser o confiscável serviçal
a que o Rio confere a alta missão
de sumir com seus podres, contribuindo
para que nossa imagem se redobre
de graças mil sob este céu de anil?
Vamos, aperte mais o cinto,
se o tiver (barbante mesmo serve)
e pense na cidade, nos seus mitos
que cumpre manter asseados e luzidos.
se o tiver (barbante mesmo serve)
e pense na cidade, nos seus mitos
que cumpre manter asseados e luzidos.
Não me faça mais greve, irmão-lixeiro.
Eu sei que há pouco pão e muita pá,
e nem sempre ou jamais se encontram dólares,
jóias, letras de câmbio e outros milagres
no aterro sanitário.
Eu sei que há pouco pão e muita pá,
e nem sempre ou jamais se encontram dólares,
jóias, letras de câmbio e outros milagres
no aterro sanitário.
E daí? Você tem a ginga, o molejo necessários
para tirar de letra um samba caprichado
naqueles comerciais de televisão,
e ganhar com isto o seu cachê
fazendo frente ao torniquete
da inflação.
para tirar de letra um samba caprichado
naqueles comerciais de televisão,
e ganhar com isto o seu cachê
fazendo frente ao torniquete
da inflação.
Pelo que, prezadíssimo lixeiro,
estamos conversados e entendidos:
você já sabe que é essencial
à segurança nacional
e, por que não, à segurança multinacional.
estamos conversados e entendidos:
você já sabe que é essencial
à segurança nacional
e, por que não, à segurança multinacional.
REFERÊNCIA
[1]. DUTRA, Eliana de Freitas. Cultura. In: História do Brasil Nação: 1808-2010.
Direção Lilia Moritz Schwarcz. Vol. 4. Olhando para dentro: 1930-1964.
Coordenação Ângela de Castro Gomes. São Paulo: Fundación
Mapfre/Objetiva, 2013, p. 264.
2. História geral da civilização brasileira. Tomo III, Vol. 11: O Brasil republicano. Direção de Boris Fausto. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007, p. 614.
3. História geral da civilização brasileira. Tomo III, Vol. 11: O Brasil republicano. Direção de Boris Fausto. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007, p. 614.
4. História geral da civilização brasileira. Tomo III, Vol. 11: O Brasil republicano. Direção de Boris Fausto. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007, p. 621.
5. https://www.youtube.com/watch?v=s14K_ekxBxo, acesso em 06/03/14.
(*) Jorge Luiz Souto Maior é Magistrado do Trabalho, Escritor e Professor de Direito do Trabalho na Faculdade de Direito da USP.
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