Noticia
A cor faz diferença
(*) Marcelo Chalréo
Pequeno
e adolescente tive estreita convivência com o meio rural do Rio de
Janeiro, por conta da origem de parte de minha família. Nesse ambiente, a
vida girava – e de certa forma ainda gira – em torno da criação de
gado, lavouras, exploração de florestas etc. O trabalho braçal em grande
medida era desempenhado por negros e negras, mestiços e mestiças,
embora a muitos brancos não fosse reservado trabalho diverso. Havia,
contudo, certa diferença.
Embora
vários brancos se envolvessem diretamente com a produção rural,
participando da lida cotidiana, em geral suas residências eram melhores,
suas roupas em variedade e quantidade eram superiores, seus hábitos
mais "sofisticados".
Aos
da outra cor – centenas ainda vivendo sob o regime de colonos, outros
nem isso – era reservado um outro status social, visível em suas
vivendas, suas vestimentas, sua alimentação. Lembro-me de que calçados
eram peças raras no vestuário de trabalho do homem e da mulher "de cor".
Escola era item reservado ao essencialmente básico, quando o era, para
os não brancos; ginásio era algo quase exclusivo dos de pele clara.
Havia
nesta pequena cidade dois clubes sociais, vulgarmente chamados de
"clube de baixo" (na área nobre da urbe) e "clube de cima" (em área mais
discreta e um pouco menos povoada à época). O "clube de baixo" era
também conhecido como "dos brancos"; o outro, "dos negros". Como se pode
perceber, o primeiro era reservado a certo público; o segundo, a outro
segmento. Muitas atividades – bailes, festejos, noites de bingo etc. –
aconteciam simultaneamente em ambos, mas em geral no "clube de baixo"
terminavam um pouco mais cedo, cerca de uma hora ou mais. Finda a
atividade neste, vários homens de pele clara, muitas vezes após deixarem
suas companhias (esposas, noivas, namoradas, mães etc.) em casa, se
dirigiam ao "clube de cima", com a finalidade de aproveitarem o final da
noite, em geral para "pegar" uma "neguinha", uma "mulata", uma "preta"
(as expressões entre aspas são aqui
usadas por serem exatamente fiéis).
Menos
de 40 anos atrás entramos com um amigo no "clube de baixo": ele era
negro! O único, um dos primeiros, a adentrar o recinto para curtir uma
noite de pré-folia. Minto, haviam outros negros nesse dia, mas estavam
na portaria – a servirem de guarda –, na cozinha, na limpeza dos
banheiros e em serviços correlatos. Lembro-me até hoje do
constrangimento que causamos aos brancos e aos próprios negros com essa
nossa atitude, do olhar desconfiado e até um pouco amedrontado do nosso
amigo. Um amigo da família, senhor já bem maduro, comentou: "... sinal
dos tempos, tudo um dia muda".
Passados todos esses anos me pergunto o que mudou na essência. Se expressões como "preta de alma branca", "isso é serviço para preto", "comida de nego é couro", "lugar de preto é na cozinha" e outras são cada vez mais incomuns em nosso vocabulário, os olhares e sentimentos da nossa elite terão de fato mudado? Infelizmente me parece que não.
Os
indicadores sociais estão à disposição para confirmarem essa assertiva
(os cárceres são um bom exemplo). Somos formados e forjados em uma
cultura branca, maniqueísta e excludente [há poucos anos uma amiga,
morena clara, ao apresentar o namorado aos pais, pessoas esclarecidas,
progressistas e antirracistas – no discurso, como descobriu naquele
momento –, não deixou de perceber olhares enviesados para o seu par
mulato]. As senzalas em sua forma atual foram transferidas para a
periferia das grandes cidades ou para suas degradadas áreas de vivência,
controladas com mão de ferro pelo Estado policial, pelos modernos
capitães do mato. Que não ousem (eles) extrapolar ou avançar essa
fronteira
demarcada pela indigência e pela exclusão. A violência, sob todos os
matizes, todavia a particularmente mais contundente e letal, está
reservada aos não brancos. A morte violenta tem cor em nosso país,
título ou subtítulo de texto lido há algumas semanas.
O
passado escravocrata ainda é presente em nosso cotidiano. Para
superação desse quadro, muito há de ser feito, a começar do berço, da
mais básica formação. Mas isso é pouco. É preciso um efetivo compromisso
político para o pagamento dessa dívida social de séculos. É preciso
investir maciça e estruturalmente, e não de modo cosmético ou supérfluo,
nas áreas mais pobres e excluídas de nosso
país, onde se concentra a população eternamente – termo nefasto – marginalizada, segregada, majoritariamente negra e mestiça.
E não é só!
É
preciso titular, e logo, as terras quilombolas; é preciso levar a cabo a
demarcação e consolidação de todas as áreas indígenas (ou índio não
sofre com racismo no Brasil?) assim identificadas ancestralmente; os
povos ribeirinhos, os povos da floresta e pescadores artesanais (dentre
eles, milhares são negros,
pardos, mestiços) também precisam ter seu modo de vida e suas terras e possessões guardadas e atendidas pelo Poder Público.
Para
tanto, isso exige uma política de Estado determinada e firme,
arrostando nossa elite conservadora e branca. Mas, sinceramente, não
vejo isso de fato em curso no Brasil. As ações de governo nessa seara
são ainda pífias, superficiais, laterais e pouco, muito pouco para quem
deitava esperanças em governos
"progressistas".
Portanto, muito a fazer, muito a lutar, e lutar sem tréguas para que
outra quadra possa ser sorvida por outra geração, que certamente não
será a nossa e a dos nossos filhos, infelizmente, ainda.
Artigo publicado na revista Consulex.
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