Contra reserva, ruralistas sitiam cidade no Mato Grosso
Leonardo Sakamoto
Fazendeiros
locais espalharam boatos, fecharam acessos, queimaram casas e fizeram
ameaças contra camponeses em Luciara, situada na região do Araguaia, na
semana passada. A matéria é de Daniel Santini, da Repórter Brasil:
A
cidade de Luciara, na região do Araguaia, no nordeste do Mato Grosso,
foi sitiada com episódios de violência no último final de semana. Em
protesto contra os estudos para a criação de uma Reserva de
Desenvolvimento Sustentável em uma região de várzea nas margens do rio
Araguaia, ruralistas bloquearam todos os acessos à cidade de
quinta-feira, 19, a domingo, 22, queimaram duas casas de camponeses
locais, expulsaram professores e estudantes universitários que visitavam
a região, fizeram ameaças e espalharam boatos de que a cidade seria
totalmente desocupada pelo Governo Federal, provocando revolta entre a
população. Um tiro chegou a ser disparado contra a casa de José Raimundo
Ribeiro da Silva, professor de filosofia e história e diácono local, e o
vereador Jossiney Evangelista Silva (PSDB), indígena da etnia Kanela,
foi cercado, impedido de entrar na cidade e ameaçado em um dos
bloqueios. Ambos são favoráveis à criação da reserva.
Dada
a gravidade da situação, o Ministério Público Federal entrou com pedido
de prisão provisória contra quatro pessoas no domingo, 22, deferido no
mesmo dia pela Justiça. No começo da semana, a Polícia Federal cumpriu
os mandados e prendeu três dos acusados de um conjunto de crimes que
inclui incêndio, ameaça à vida, formação de quadrilha e cárcere privado.
Um quarto suspeito continuava foragido até a publicação desta
reportagem. “Além das prisões, estamos investigando o motivo de os
órgãos públicos da cidade não terem funcionado na sexta-feira. A menos
que estejam apoiando, não faz sentido repartições fecharem as portas”,
diz o procurador federal Lucas Aguilar Sette, que visitou a cidade para
reunir provas e identificar os responsáveis pelo que classifica como uma
explosão de violência. “Os fazendeiros e políticos locais cooptaram
pessoas promovendo um churrasco de três dias e passando informações
equivocadas para a população. As pessoas bebiam, iam fazer ameaças e
voltavam para a festa”, explica o procurador, que diz que, para provocar
pânico, os agitadores utilizaram o exemplo de Posto da Mata, vilarejo
irregular construído dentro da Terra Indígena Maraiwatsédé e desocupado no ano passado.
Autoridades
federais e estaduais também foram mobilizadas e informadas sobre o
problema, incluindo o Ministério da Justiça, a Delegacia Geral da
Polícia Federal, a Secretaria Estadual de Justiça e Direitos Humanos e a
Secretaria Estadual de Segurança Pública. “A população está muito mal
informada. A mídia está vendendo essa ideia. E é uma situação
completamente diferente. Luciara não será desocupada, não tem relação”,
diz o procurador.
“Fazendeiros
e grileiros mentiram dizendo que a cidade seria evacuada e que viraria
uma reserva. Enganam o povo e fazem ameaças. Falam como se fosse igual,
mas Luciara é um município constituído e Posto da Mata era uma vila em
uma Terra Indígena. Pedro Casaldáliga sempre
disse para não erguermos igrejas em Posto da Mata porque a cidade
estava em Terra Indígena. Precisamos que órgãos governamentais mostrem
ao cidadão comum a realidade”, diz José Raimundo Ribeiro da Silva, o
Zecão, como é conhecido o professor e diácono que teve sua casa atingida
por um disparo. “Estamos sendo vítimas do ‘agrobanditismo’. Sou a favor
da criação da reserva, da preservação da margem do rio Araguaia, de que
o avanço da soja não suje a água de veneno. Tenho recebido ameaças e
temo pela minha vida”, completa. A Comissão Pastoral da Terra divulgou nota denunciando o atentado contra o diácono.
Os retireiros - A
revolta está relacionada à insatisfação de latifundiários locais com a
perspectiva de criação de uma Reserva de Desenvolvimento Sustentável,
que beneficiaria camponeses conhecidos como “retireiros”. São criadores
de gado que usam as áreas de várzea do rio Araguaia para o pastoreio
durante as secas e, quando o rio sobe, retiram os animais para terras
mais elevadas. Eles criam o gado de maneira solta em uma região de
pastagem comum, nativa. Não há cercas nas áreas, já que impediriam o
acesso à água pelo gado e acarretariam no pisoteio exagerado de algumas
áreas de pastagens.
“Temos
de preservar uma comunidade que há mais de 60 anos lida com gado no
‘varjão’ do Araguaia. Esse gado se sustenta ali e fica quatro, cinco
meses na área de várzea. Depois, o retireiro retira e vai para o lugar
alto, onde constrói sua casa, tem uma horta. Ele tira o leite e espera a
água baixar para voltar com o gado para lá. Nessa labuta, [os
retireiros] construíram saberes sobre a biodiversidade, a fauna e flora,
o relacionamento com o rio. Eles conhecem a natureza como poucos”, diz
Zecão.
Incêndio destruiu casa de Rubem Sales, presidente da Associação dos Retireiros do Araguaia. Foto: Arquivo Pessoal
“Houve
um recrudescimento [da violência] por parte de algumas pessoas que são
contrários à criação da Unidade de Conservação. Esse é o motivo”,
explica Fernando Francisco Xavier, coordenador Regional do Instituto
Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), autarquia do
Ministério do Meio Ambiente responsável pelas Unidades de Conservação
Federais. “Pode haver oposição, mas não podemos admitir que um Estado
paralelo se instale, que interesse apenas alguns grupos. Isso é
inadmissível”, diz Fernando.
A
mobilização está diretamente relacionada com a disputa por terras. Há
grilagem na região e envolvidos temem não poder mais comercializar
áreas.
Acadêmicos expulsos - A
confusão começou, segundo o coordenador do ICMBio, porque pesquisadores
ligados à Universidade Federal da Amazônia que visitavam a região foram
confundidos com funcionários do Governo. “Surgiu o boato de que iríamos
fazer uma consulta pública sobre a criação da reserva e a barreira
visava impedir o acesso do Instituto Chico Mendes. Não tem sentido fazer
uma consulta pública às escondidas, elas são previamente agendadas e
amplamente divulgadas”, afirma. “Podemos fazer o debate e é legítimo
[que haja oposição], mas aconteceram atentados contra representantes da
comunidade que revelam a fragilidade e vulnerabilidade a que as
lideranças estão submetidas”, completa o representante do ICMBio.
Mesmo
com a prisão de três pessoas e a operação realizada no começo da
semana, as lideranças locais ainda temem que a situação se agrave.
“Estamos sozinhos aqui agora que a Polícia Federal foi embora, sem
nenhuma proteção”, diz Rubem Taverny Sales, presidente da Associação dos
Retireiros do Araguaia, proprietário de uma das casas queimadas durante
os ataques.
A
outra é de Jossiney Evangelista Silva, o vereador indígena da etnia
Kanela, que foi impedido de entrar na cidade, cercado e ameaçado.
“Fiquei apavorado, tive medo que eles me torturassem”, conta. Ele
procurou a polícia imediatamente ao saber que haviam ateado fogo na sua
casa, e, ao tentar se dirigir à delegacia para registrar a ocorrência,
foi parado no bloqueio. Nem a presença de policiais, que haviam ido com o
vereador até o incêndio, impediu que ele fosse intimidado. “As pessoas
estavam exaltadas, um grupo me cercou, tirou a chave da ignição da moto e
tentou agredir minha prima Lidiane, tentando tomar a máquina
fotográfica da mão dela”, conta. “Do bloqueio ninguém teve coragem nem
de tirar foto. Eles falaram que eu tinha de deixar a moto e voltar a pé,
mas eu não aceitei. No fim, conseguimos ir embora.”
Na
barreira armada, além dos primeiros pesquisadores, também foram parados
professores e estudantes ligados ao projeto Nova Cartografia Social da
Amazônia, que realizariam uma Oficina de Mapas com os retireiros. Entre
os expulsos estão os professores Cornélio Silvano Vilarinho Neto e
Antonio João Castrillon. Os acadêmicos fizeram críticas públicas à
postura agressiva dos ruralistas. “A violência que atinge as pessoas
pelo constrangimento, intimidação e destruição, visa também enfraquecer e
desestruturar a identidade coletiva do grupo, que está fortemente
ligada ao processo de territorialização específica das áreas de retiro”,escreveu Castrillon.
Soja, grilagem e terras públicas - A disputa fundiária em Luciara está relacionada ao avanço do monocultivo de soja na região do Araguaia, assunto que foi tema de reportagem publicada em fevereiro pela Repórter Brasil. Com
a expansão das plantações na região, as terras estão cada vez mais
valorizadas e o desmatamento aumenta devido à necessidade de novas áreas
para plantio. Além do espaço necessário para o cultivo, o fato de o
veneno utilizado nas lavouras afetar os rios também é motivo de
conflitos.
Em
Luciara, em 2009, como parte dos estudos para criação da reserva, foi
feito um levantamento fundiário completo de títulos e ocupantes de uma
área de 198 mil hectares, considerada ideal para a reserva. Para
minimizar a tensão fundiária, porém, o ICMBio passou a trabalhar com 110
mil hectares. “Vimos a necessidade de diminuir para uma área menor em
função dos conflitos existentes. Decidimos delimitar o espaço de uso da
comunidade, ainda que em prejuízo dos retireiros para viabilizar a
reserva. Isso mesmo considerando que muitas terras não têm atividade
agrícola”, explica Fernando Francisco Xavier, o coordenador do ICMBio. A
Secretaria de Patrimônio da União foi acionada para averiguar quais são
as áreas públicas que poderiam ser incluídas na reserva. Os retireiros
já entraram com pedido de Concessão de Autorização de Uso Sustentável
(Caus).
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