terça-feira, 24 de setembro de 2013

TRABALHO INFANTIL

Jovens trabalham com fogo para torrar castanhas no Rio Grande do Norte

Depois de torrar, começa a função repetitiva de quebrar a casca da castanha. As condições de trabalho são precárias. Lanternas e candeeiros trazem um pouco de luz para as mesas onde os trabalhadores batem os porretes bem pertinho dos dedos.

No Brasil, milhões de crianças e adolescentes ainda trabalham. Muitas vezes, se arriscam em trabalhos pesados. A maioria, pela necessidade de ajudar os pais.
É madrugada. Na área rural de João Câmara, no Rio Grande do Norte, pequenos pontos de luz brilham na escuridão. Mais de perto dá para ver: são chamas acesas pelas famílias que não podem dormir.
Elas precisam trabalhar na melhor hora do sono.  E são dezenas de pessoas: homens, mulheres com filhos, parentes e vizinhos. São operários de um ofício exaustivo, artesanal, tocado de forma rudimentar, quase primitiva.
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A comunidade toda sobrevive do beneficiamento da castanha do caju. Em cada palhoça, é possível encontrar famílias inteiras trabalhando. Todo esforço é necessário porque eles ganham por produção. E, mesmo assim, trabalhando na madrugada escura, juntando toda a família, o rendimento é pequeno. É quase nada.
Dona Francisca do Nascimento quebra castanhas de caju desde os 12 anos de idade. Ela, o marido, o filho e um sobrinho formam uma unidade de produção.
Globo Repórter: Vocês ganham quanto por semana?
Francisca Barbosa do Nascimento, descascadora de castanhas: O máximo que a gente ganha é 100 contos, 90 reais, 110 conto, 120 é o máximo. É um sacrifício que não é pouco. É muito.
A parte mais perigosa é lidar com o fogo. Há dois anos, Carlos, que tem 18, encara a fumaça, as labaredas e o calor para torrar as castanhas que serão descascadas. É preciso muita atenção porque as castanhas soltam um óleo inflamável e as chamas aumentam de repente.
Globo Repórter: Já se queimou alguma vez?
Jovem: Já. Na mão, no braço.
Globo Repórter: É muito calor aqui perto?
Jovem: É quente.
Globo Repórter: Você lida quantas horas por dia com este fogo aqui?
Jovem: Sete horas, oito horas.
Globo Repórter: Você tem medo deste trabalho?
Jovem: Não. Tenho de viver disto aqui mesmo.
Depois de torrar, começa a função repetitiva de quebrar a casca da castanha. Eles trabalham sérios, em silêncio. Só se escuta o som das pequenas batidas do porrete nas castanhas.
As condições de trabalho são precárias. Lanternas e candeeiros trazem um pouco de luz para as mesas onde os trabalhadores batem os porretes bem pertinho dos dedos.
Das cascas torradas como carvão, é retirada uma amêndoa saborosa pra quem consome, mas que tem gosto amargo de exploração e de exclusão para os trabalhadores.
Quando o dia começa a clarear, por volta das 5h30, o expediente já começou faz tempo. Algumas famílias estão trabalhando desde as 2h. E é tanta fumaça que parece até uma neblina cobrindo toda a comunidade.
Mal dá pra ver as casas, no povoado envolto na fumaça espessa que vem de dezenas de palhoças de beneficiamento de castanha. A claridade revela a presença de pequenos trabalhadores.

Leandro, Alexandre e Taline. Os três filhos de Dona Ana Maria já nascem com o destino traçado. Taline é a mais nova, está com 14 anos. Ela tem as mãos manchadas da nódoa escura que sai da castanha.
Globo Repórter: O que você acha deste trabalho?
Menina: Não é muito legal não, mas é o jeito.
Globo Repórter: E como é que você acha que deveria ser a vida de uma garota de 14 anos?
Menina: Estudando, se divertindo.
A realidade é bem dura para as crianças e adolescentes que vivem em João Câmara. A equipe do Globo Repórter encontrou meninos e meninas tão pequenas que é preciso colocar tijolos debaixo das cadeiras pra que elas possam atingir a altura das mesas.
Globo Repórter: Quantos anos você tem?
Menino: Nove.
Globo Repórter: O que é pior pra você, mais difícil?
Menino: A preguiça.
Preguiça? Crianças em pé, ou em posição desconfortável em tábua e cadeiras velhas, durante horas, curvadas repetindo movimentos. No dicionário da família de Seu Gilvan do Nascimento, não existe a palavra preguiça. Ele e os três filhos trabalham 12 horas por dia.

Globo Repórter: Os seus filhos trabalham à partir de que idade?
Gilvan: Tudo começa de 14 anos em diante.
Globo Repórter: Estão todos fora da escola?
Gilvan: Tudinho, tudinho.
Todos os adultos que encontramos não estudaram e os jovens abandonaram a escola.
Na escola rural os reflexos do trabalho precoce são dramáticos.  A maioria é de alunos pequenos. Os maiores começam a faltar e mais tarde abandonam por completo a sala de aula. E mesmo os mais novos já trazem as marcas do trabalho precoce.
Ele é bem pequeno. Tem só 8 anos de idade e a prova de que trabalha descascando a castanha de caju está nas mãos. Estão cheias de nódoas, estão descascando. E como ele lava as mãos com água sanitária para tirar a sujeira, a pele vai ficando bem fininha, até sem as impressões digitais. E, muitas vezes, vai cortando, vai ferindo a mãozinha.
Globo Repórter: E o que você faz?
Menino: Quebro e despelo.
Globo Repórter: Quantas horas por dia você trabalha?
Menino: Umas três.
Globo Repórter: E para limpar a mão, como é que você faz?
Menino: Eu boto água sanitária na bacia e esfrego.
Globo Repórter: E às vezes machuca a mão?
Menino: Corta
Crianças condenadas a repetir o destino dos pais. “O jovem daqui, muitos jovens não sabe ler. A assinatura ainda é assim, antigamente, assinando com as digitais”, afirma Selma Teixeira, diretora da escola.
E na família do Seu José Raimundo, são três gerações, descascando castanha para os atravessadores, ganhando apenas o suficiente pra sobreviver.
Globo Repórter: Quem da família trabalha aqui com o senhor?
José Raimundo da Silva, descascador de castanhas: Trabalham quatro filhos, seis netos e um genro.
O rosto coberto de suor é o da neta de 15 anos. A menina sofre com o calor. É dela a obrigação de manter o fogo para torrar as castanhas. E tem que mexer a panela pra não deixar queimar. O corpo miúdo sente o esforço. Respirar fumaça é quase inevitável e as pequenas queimaduras também.
Globo Repórter: Não é difícil para uma menina como você?
Menina: É difícil, mas a gente precisa.
Apesar do cansaço, Suziane não desistiu da escola, nem do sonho.
Globo Repórter: O que você espera do futuro?
Menina: Do futuro eu espero uma faculdade, trabalhar, sair desta vida. Meu sonho é cuidar de criança.
 
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Crianças sem identidade, o trabalho infantil na produção de castanha de caju
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Meninos e meninas têm as mãos queimadas por ácido e perdem digitais na quebra da castanha do caju. Mesmo após denúncias, problema persiste no Rio Grande do Norte
Texto e fotos por Daniel Santini, da Repórter Brasil
da série especial Promenino*
Enviado a João Câmara (RN) - Olhe a ponta do seu dedo. Repare no conjunto minúsculo de linhas que formam sua identidade. Essa combinação é única, um padrão só seu, que não se repete. As crianças que trabalham na quebra da castanha do caju em João Câmara, no interior do Rio Grande do Norte, não têm digitais. A pele das mãos é fininha e a ponta dos dedos, que costumam segurar as castanhas a serem quebradas, é lisa, sem as ranhuras que ficam marcadas a tinta nos documentos de identidade.
O óleo presente na casca da castanha de caju é ácido. Mais conhecido como LCC (Líquido da Castanha de Caju), esse líquido melado que gruda na pele e é difícil de tirar tem em sua composição ácido anacárdico, que corrói a pele, provoca irritações e queimaduras químicas. No vilarejo Amarelão, na zona rural de João Câmara, as castanhas são torradas – além de corroer a pele, o óleo é inflamável – e quebradas em um sistema de produção que envolve famílias inteiras, incluindo as crianças.
colocara uma legenda aqui
Com a pele cada vez mais lisa, as pontas dos dedos perdem as digitais, e as linhas e traços de identidade se esfacelam (clique nas fotos para ampliar)
O óleo é pegajoso. Basta pegar uma castanha e quebrá-la para ficar com a pele manchada por alguns dias. Nem todas as crianças e os adultos que trabalham no processo sabem que o óleo é ácido. Muitos acham que a mão fica assim machucada por conta da água sanitária utilizada para tirar o preto encardido da mão depois de horas seguidas manuseando e quebrando as castanhas torradas. “Se fosse assim, as pessoas que usam água sanitária para limpeza estariam roubadas! É o óleo LCC que tem uma ação irritante, ele é cáustico, produz lesões e chega a retirar as digitais”, explica o médico Salim Amed Ali, autor de diferentes estudos sobre doenças ocupacionais para a Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e Medicina do Trabalho (Fundacentro), do Ministério do Trabalho e Emprego. A perda da identidade não é permanente. Com o tempo, as digitais voltam se a pessoa se afastar da atividade.
Sobrevivência
O médico fez pesquisas específicas sobre a saúde de trabalhadores de unidades industriais de processamento de castanhas de caju e diz que a atividade pode ser considerada insalubre. No caso em questão, em que a produção é totalmente artesanal e as famílias dependem do trabalho para sobreviver, ele destaca quão contraditória é a situação. “A subsistência está calcada em condições de trabalho inviáveis. Para viver, o sujeito precisa se submeter a condições inaceitáveis e as crianças acabam sacrificadas. Não dá para aceitar isso em pleno século 21”, afirma.
Um menino e uma adolescente se revezando ao redor da mesa. A garota é quem cuida do fogo, alimenta a lata improvisada com cascas de castanha e controla as labaredas espirrando água com uma garrafinha. A fumaça sobe e cobre seu rosto. Um cachorro dorme perto do fogo. Eles estão nessa atividade desde a madrugada, começaram às 3 horas. É preciso começar cedo, no sol do sertão nordestino, não dá para continuar com o calor de meio-dia.
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Os trabalhos começam cedo, devido ao calor do sertão nordestino; ao meio-dia, o sol é muito forte para prosseguir
O garoto tem 13 anos e, assim como a irmã, cursou até a quarta série do ensino fundamental mas tem dificuldades para ler e escrever. Largou a escola na quinta série porque teria de viajar uma hora de ônibus para ir até uma que atende alunos mais velhos, localizada na área urbana de João Câmara – trabalhar e estudar ao mesmo tempo já é difícil quando a escola é perto; quando não há escolas perto, impossível. Ele quebra as castanhas com agilidade, seus dedos fininhos seguram, selecionam e escapam das pancadas duras.
São poucas as palavras, ambos trabalham em silêncio e as respostas são curtas. Na mesa vizinha, os mais velhos reclamam da falta de água – a que a prefeitura tem entregue para abastecer as cisternas do bairro é salobra. “Dá dor de barriga e aí a gente tem de comprar água de garrafa, vê se pode”, conta uma mulher de 63 anos, que já passou fome e acha melhor que as crianças trabalhem com castanhas do que colhendo algodão ou roçando pasto para o gado, atividades que exerceu quando criança.
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Meninas, meninos, pais, mães e famílias inteiras se misturam para organizar a produção das castanhas
Em outra unidade de produção, uma família adapta o ritmo à existência de um recém-nascido. Uma adolescente, também de 15 anos, se reveza com o marido de 18 anos e sai, de tempos em tempos, para amamentar o bebê. “Eu lavo as mãos bem antes de pegá-lo, para não sujá-lo”, conta a mãe, antes de fazer uma pausa às 4 horas. O trabalho costuma ir até as 11 horas e, à tarde, todos trabalham tirando a pele fininha.
O emprego de crianças na quebra da castanha de caju está incluído na lista de piores formas de trabalho infantil, ao lado de atividades como beneficiamento do fumo, do sisal e da cana-de-açúcar. A situação a que estão submetidas as crianças de João Câmara (RN) não chega a ser novidade. A auditora fiscal do trabalho Marinalva Cardoso Dantas, coordenadora do Fórum Estadual de Erradicação do Trabalho da Criança e de Proteção ao Adolescente Trabalhador, tem realizado sucessivas ações de fiscalização, denunciado a situação e cobrado soluções. “Não dá para aceitar que as crianças continuem nessa situação, mas não basta reprimir, é preciso oferecer alternativas”.
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A representante do poder público reconhece o problema na região, mas admite: “não conseguimos avançar”
Além de identificar as crianças e reunir informações para relatório a ser entregue ao Conselho Tutelar da cidade, ela também tem procurado cobrar providências por parte da prefeitura sobre a situação das famílias. Os programas sociais são considerados insuficientes pelos moradores, que reclamam da atuação do poder público. “Sabemos do que está acontecendo, mas até agora não conseguimos avançar”, admite Maria Redivan Rodrigues, secretária de Assistência Social e primeira-dama de João Câmara, que promete solucionar o problema em um ano, até setembro de 2014. O Brasil se comprometeu a erradicar as piores formas de trabalho infantil até 2015, mas, mesmo com denúncias, situações com a de João Câmara persistem.
Em 24 de fevereiro de 2012, o promotor Roger de Melo Rodrigues, do Ministério Público Estadual, abriu o Inquérito Civil nº 06.2012.00003777-7 após denúncias. “Ele disse que ia processar as famílias, tentou proibir as pessoas de trabalhar, deixou todo mundo apavorado. Foi muito ruim”, diz Ivoneide Campos, presidente da Associação Comunitária do Amarelão. “A fumaça faz mal, a gente sabe, mas as famílias não querem mudar o método com que sempre trabalharam. E não adianta forçar, tem de transformar em querer, ajudar na busca de alternativas”, defende.
Procurado para comentar a reclamação, o promotor negou, em nota, que sua atuação tem sido meramente repressiva. Ele diz que “os problemas relacionados à queima de castanha, tais como impacto ambiental, danos à saúde dos moradores e trabalho infantil, não têm passado desapercebidos do Ministério Público Estadual” e que “em vez de buscar a repressão de delitos relacionados ao caso, esta Promotoria tem priorizado o diálogo com a respectiva comunidade, já havendo sido realizadas duas reuniões no local com todos os interessados e representantes de órgãos municipais, estaduais e federais, objetivando a construção de um consenso para solucionar o caso”.
O promotor reclama, porém, que embora “busque uma resposta adequada e legítima aos problemas, tem enfrentado alguma resistência relacionada ao costume já enraizado, da parte de algumas famílias locais, de proceder à queima de castanhas ao alvedrio dos respectivos danos decorrentes, o que não impedirá uma atuação isenta e efetiva para a resolução do caso”.
Potiguar
Entre as famílias que dependem do processamento de castanhas de caju para sobreviver estão as de um assentamento localizado na região de índios Potiguar, um dos poucos núcleos remanescentes dessa etnia que no passado povoou o estado inteiro. Os ganhos são mínimos. A castanha crua é comprada de pequenos produtores da região de Serra do Mel. Um saco de 50 kg rende, em média, 10 kg de castanha processada. As famílias contam que ganham de R$ 30 a R$ 100 por semana, vendendo a produção a intermediários que revendem em feiras e mercados de cidades.
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Assim que as castanhas estão torradas, as mãos se levantam; pancadas quebram uma noz, depois outra e outra, e outra
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O óleo se esparrama em torno das unhas, pela ponta dos dedos e, quando se vê, as mãos inteiras já estão cheias de ácido
“Tentamos identificar quem lucra com isso, mas é um sistema muito primitivo. As indústrias organizaram a produção e estão processando diretamente as castanhas, não identificamos nenhuma envolvida. Os intermediários são pequenos comerciantes que adquirem o produto diretamente com as famílias”, explica o auditor fiscal José Roberto Moreira da Silva.
Criatividade na busca por soluções para as famílias não falta. Nilson Caetano Bezerra, do Fórum Estadual de Erradicação do Trabalho da Criança e de Proteção ao Adolescente Trabalhador Aprendiz, por exemplo, sonha em fazer parcerias com as empresas de produção de energia eólica, que fazem multiplicar o número de torres de geração na região, para empregar adolescentes como aprendizes. E em providenciar máquinas para que os adultos não tenham de manusear as castanhas torradas. Experiências com mecanização já aconteceram, mas o descasque manual ainda é o preferido porque a taxa de desperdício é menor.
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Mesmo que já exista formas de produção mecanizadas, ainda há preferência pelas técnicas manuais, que seriam mais produtivas
Em fevereiro, o juiz Arnaldo José Duarte do Amaral, titular da 9ª Vara do Trabalho de João Pessoa, visitou a comunidade e também encontrou as crianças trabalhando na produção de castanhas. Ele escreveu um artigo sobre a questão e, desde então, tenta articular soluções e envolver mais interessados em resolver o problema. “Quando estive lá como juiz, me perguntavam se ia prender alguém. Não é esse o papel do judiciário, o objetivo não é prender ninguém, é achar solução”, diz, defendendo a formação de cooperativas e mecanismos de economia solidária como o melhor caminho para erradicar o trabalho infantil e melhorar a condição de trabalho dos adultos. “A gente tenta corrigir essas questões há séculos, sem sucesso. Não bastam ações repressivas, que vão além de tentar punir.”
* Reportagem produzida em parceria com Promenino/Fundação Telefônica Vivo, e publicada também no site Promenino, que reúne mais informações sobre combate ao trabalho infantil
 

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