Genocídio
Mercado transforma o trabalhador em
dependente químico
(Margarida Barreto* e Luiz Salvador**)
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Brasil
- Os números mais recentes sobre acidentes e doenças do trabalho da última
década no Brasil desvendam uma realidade assustadora, apesar das
subnotificações que ainda prevalecem como subproduto das políticas de gestão.
Segundo dados da Previdência extraídos da Comunicação de Acidentes do Trabalho
(CAT) podemos afirmar sem exageros que a década de noventa assinala um massacre
no mundo do trabalho: foram 4.148.861 acidentes típicos(1), 197.059 casos de
doenças do trabalho e 39.250 óbitos. Todos com o mesmo nexo-causal: o trabalho.
Números da pesquisa da Dataprev (2) referente aos últimos 3 anos desse século
confirma a continuidade do massacre: 908.326 acidentes típicos, 58.978 doenças
do trabalho e 8.745 mortes. Há uma guerra imposta, não declarada, silenciosa,
em que previamente sabe-se quem serão os vencedores. Se não fossem os números
reveladores, seria um morticínio sutil, passando quase que por despercebido -
verdadeira tragédia nacional - prejudicial a toda a sociedade. Para
compreendermos o que venha a ser essa guerra oculta, não declarada e causadora
de tantas tragédias já catalogadas, basta examinarmos os efeitos que ela mesma
produz, fazendo-se necessário refletirmos a política econômica de tonalidade
neoliberal e seu traço destrutivo: concorrência e competitividade desenfreada
entre trabalhadores; desemprego massivo; aumento da miséria urbana; exclusão
social. E, numa conclusão lógica, logo podemos observar que a essência da
expansão desse projeto econômico neoliberal se concentra na migração dos riscos
dos países do norte para os países do sul, com os efeitos decorrentes já
conhecidos: quebra de direitos sociais; desregulamentações; reformas no
contrato de trabalho com predomínio do emprego temporário; presença crescente
dos estagiários permanentes; incremento do trabalho terceirizado, gerando
subemprego, subcontratações, utilização da mão de obra conhecida free-lance e
outras modalidades legislativas tidas como modernas que patenteiam e reforçam a
precarização do trabalho. No intramuros, as políticas de recursos humanos
buscam obstinadamente satisfazer a voracidade por lucros cada vez maiores. E
discorrem dia-após-dia sobre a necessária motivação, entusiasmo e liderança, na
perseguição incansável da maior lucratividade e produtividade. E como
estratégia de estímulo da produção, o sistema vale-se da chamada
"ferramenta afetiva". A intencionalidade é criar um clima de
contentamento geral e aceitação sem questionamento do modelo imposto,
independentemente das condições de trabalho propiciadas ao conjunto de
trabalhadores, onde predomina a flexibilização e a precarização em nome da
empregabilidade. E, para a reprodução do capital, o que importa são as metas, o
controle da produtividade, o ritmo de trabalho, obrigando o trabalhador a
dispor cada vez mais de menos tempo para atingir as metas então estabelecidas
de produção; e, conjugada com a execução de múltiplas tarefas a um só tempo,
essa metodologia adotada permite atingir as mesmas metas, permitindo-se que se
possa utilizar cada vez mais, menos trabalhadores contratados. Assim esses
trabalhadores que ainda permanecem contratados são submetidos a jornadas de
trabalho prolongadas, dilatadas, mas não transparentes, posto que escamoteadas
pela adoção, como exemplo, do banco de horas autorizado pela legislação de
cunho flexibilizador e que tem o efeito perverso de aumentar ao máximo o tempo
de disposição do empregado em favor da produção, sem a contrapartida salarial
correspondente, permitindo-se ao empregador pagar salários cada vez menores e
de custos da produção cada vez mais reduzidos. O processo de terceirização
permite a existência de empresas flexibilizadas e horizontalizadas nas formas
de gerir e de produzir, atuando em redes com regras claras e fixas, quer para
admitir ou demitir. A adoção desse sistema de terceirização, quarterização
permite, em nome da adoção de novas tecnologias, o processo de demissão do
empregado da unidade produtiva central, que, como num passe de mágica, se
desoneram dos custos de produção direta, contornando a aplicação da legislação
social vigente, por outra menos protetiva e benéfica aplicável aos empregados
terceirizados. E essa mesma legislação tão festejada, porque mais
flexibilizada, vai aos poucos quebrando a saúde física e mental dos
trabalhadores, diuturnamente ameaçados com o flagelo do desemprego. Para a
empresa, flexibilizar significa terceirizar, quarteirizar, subcontratar, subempregar
e transferir riscos que se configuram em novas redes empresariais de
precarização. Para os trabalhadores e trabalhadoras, significa maiores
exigências e sobrecargas. Ser flexível é adaptar-se às mudanças constantes. É
deixar-se expropriar o tempo de lazer e convívio com a família, pois, o tempo é
de domínio da empresa. E a instabilidade no emprego faz parte do pacote
flexibilizado. Numa das pontas do sistema, a flexibilização e terceirização
virou regra comum nas empresas, os riscos passaram a ser terceirizados e
"desapareceram" da responsabilidade da corporação. Com ambientes de
trabalho "clean" e aparentemente saneados, os programas de controle
dos acidentes chamados de "tolerância zero", exibem uma realidade que
contrasta com o contingente de trabalhadores que adoecem, sendo demitidos e
substituídos por outros ainda sadios e de menor custo operacional, criando um
exército de trabalhadores doentes, lesionados, desempregados, que sem a emissão
da CAT e reconhecimento do nexo causal ou nexo entre a doença e o trabalho
executado, não permite que o INSS lhes conceda o benefício acidentário,
impedindo que o trabalhador também obtenha possibilidades de sucesso em
julgamento perante o Poder Judiciário, cujas decisões buscam sempre o apoio nas
conclusões positivas dos laudos dos peritos apontadores ou não do nexo causal.
Em outra ponta, o modelo da organização de trabalho ainda mantém como traço
categórico das relações hierárquicas, o abuso de poder - o controle contínuo
dos trabalhadores e em muitos casos sabidos, até mesmo de quantas vezes o
trabalhador vai ao banheiro. Como decorrência dessas práticas agressivas, temos
o sofrimento ético político, determinado por condições de trabalho e os
múltiplos modos de revelação dos adoecimentos. Esses podem ser avaliados como
componente particular e singular dos direitos não assegurados aos trabalhadores
e trabalhadoras assim como do dever não cumprido dos empregadores, pois o tempo
da flexibilidade é o tempo de um novo adoecer e padecer. Padecer este que está
relacionado: ao não reconhecimento do que faz; às ameaças constantes de
desemprego; às pressões e opressões continuadas para produzir cada vez mais;
aos ambientes insalubres e adoecedores, tudo isso associado ao permanente medo
da perda o emprego - do flagelo do desemprego - e não encontrar novo emprego.
Medo de não saber, de não ser reconhecido, de ser excluído por incompetência.
Medo do futuro, da sobrevivência da família. Medo que engendra: vergonha,
tolerância, sujeitamento, isolamento. Medo que é manipulado e transformado em
instrumento da produtividade, sendo nesse próprio ambiente desequilibrado que
surgem novas doenças, até mesmo as de ordem psicosomáticas. Doenças que sequer
são creditadas ao mundo do trabalho e que lá tem sua origem. São as depressões,
síndromes do pânico, distúrbios do comportamento, estresse laboral, fadiga
crônica, burnout, impotência, diminuição da libido, isolamento social, aumento
do uso de drogas, sendo o mais usual o álcool. As conseqüências ultrapassam o
indivíduo, pois invade e desarticula as relações sociais e afetivas na família;
quebra laços de camaradagem. Origina sentimento de inutilidade que leva a
muitos a ter idéias suicidas ou mesmo ao suicídio, especialmente entre aqueles
que perderam o emprego. Desta forma, é desolador ouvirmos os trabalhadores
demitidos e doentes falar do seu sofrimento. Uma via crucis interminável e
injustificável. Devem provar a doença e o nexo com o trabalho. São humilhados e
ridicularizados em diferentes espaços. Incompreendidos na família, pois não conseguem
ser readmitidos no mercado formal. Aos poucos a doença vai sendo reconfigurada,
acentuando o sentimento de inutilidade e impotência, permitindo o agravamento
da tristeza pelo que perdeu. Fato comum entre trabalhadores que receberam a
"voz da demissão" de forma sumária e impiedosa em finais de tarde e
ou mesmo em períodos de festas natalinas e ou de finais de ano. Desesperados,
saem sem rumo. Afogam-se na bebida para esquecer a traição a tantos anos de
dedicação exclusiva. Desaparecem de casa e todos são consumidos pelo desespero
e impotência. O reaparecimento, apesar de comemorado pelos familiares, é também
não compreendido dentro dos parâmetros vigentes da normalidade. Levado ao
especialista, é medicalizado. Após um ano desempregado, escondido dos vizinhos
em sua própria casa, envergonhado dos filhos e da família que agora o sustenta,
vive em sofrimento, angústia, desespero e baixo-estima. Quer desaparecer e para
buscar alívio contra a dor moral, torna-se um dependente químico dos
antidepressivos. Neste pequeno relato, cada vez mais comum, temos o
desdobramento social do ocorrido no interior da empresa: desvalorizações,
pressão, exposição a múltiplos riscos visíveis e invisíveis, adoecimento,
demissão. Com o passar do tempo, a não inserção ao mercado formal. Percebe-se
enfraquecida sua potencia de ação pelo uso de medicamentos antidepressivos. É
necessário compreendermos a trama que o envolve este trabalhador e de centenas
de outros casos análogos, com os conhecidos processos de demissões para o descarte
do trabalhador adoecido no trabalho. Não obstante a adoção dessas práticas, a
legislação social vigente no país é protetiva do trabalho humano, mas
seguidamente descumprida. O trabalhador tem que ser tratado não como peça
descartável, mas como parceiro da produção econômica, tendo o direito de ser
bem tratado, com equilíbrio e isonomia. Pois da mesma forma que é obrigado a
ter um tratamento respeitoso para com seu empregador, este também é obrigado a
respeitar o trabalhador, não ferindo sua dignidade, constitucionalmente
assegurada. É obrigação imposta por lei a que o empregador assegure ao
trabalhador um ambiente saudável e equilibrado e saneado de todos os riscos
ocupacionais, quer os visíveis, quer os invisíveis, havendo necessidade de se
investir na questão da saúde e segurança no trabalho, para que se garanta ao
obreiro as ideais condições de trabalho adequadas. É essa prática também acaba
por constituir ao empregador um bom negócio, já que trabalhador doente não
produz, ficando afastado, de licença médica, o que acaba também por trazer ônus
à própria sociedade. É fato concebido que nenhum trabalhador é admitido se
estiver doente. Todos, no processo admissional, são rastreados minuciosamente.
Adentram aqueles com saúde perfeita. Adoecem-se em conseqüência do trabalho,
adquirem um passaporte não desejado e são rejeitados como se fossem
descartáveis. Essa é a fotografia do modelo econômico que viola a dignidade do
trabalhador, transformando-o em inútil, deprimido e dependente químico,
conseqüência da desmesura de poder que viola direitos e impõem sentimentos
tristes e preocupantes. Na extremidade do mesmo fio neoliberal, como
"carro-chefe" das vendas de medicamentos, encontram-se os
antidepressivos que contribuem para o enriquecimento dos laboratórios multinacionais
ligando o desempregado de forma cruel, desumana e perversa ao mercado formal,
agora enquanto consumidor. A Carta Política Cidadã como o Novo Código Civil
Brasileiro impõe às empresas, antes do lucro, sua responsabilidade social para
com toda a sociedade, não se admitindo práticas como as denunciadas, mesmo que
travestidas de uma dimensão esquecida no intramuros e nem numa estratégia
extramuros, buscando-se mascarar a verdade presente nas relações
capital-trabalho, com políticas de sonegação de informações e de omissão de
responsabilidade empresarial quanto aos números assustadores de tantas mortes,
doenças e acidentes, divulgados e reconhecidos pela própria previdência,
vitimando milhares de trabalhadores, ceifados abusivamente enquanto força de trabalho
produtiva, de relacionar-se socialmente com os outros homens, propiciado por
sua condição material e econômica, fruto do trabalho digno a que todo cidadão
tem assegurado, visando sua melhor qualidade de vida. As condições de trabalho
e a forma como estão organizadas as relações hierárquicas de trabalho, podem
configurar-se como pressão, opressão e coação que impõe limites à ação humana.
E nesse sentido, é necessário que o Estado não se afaste de regular as relações
capital-trabalho, sendo também imperativo que as empresas se submetam ao
principio basilar do direito a dignidade humana e que o Estado democrático
cumpra seu papel de garantir a todos, independente de raça, idade, sexo ou
classe social, o direito a vida e condições dignas no ambiente de trabalho, com
políticas fiscalizatórias e punitivas dos respectivos incumprimentos da
legislação protetiva do trabalho humano. Fechar os olhos é ser cúmplice deste
cenário de genocídio. É esquecer que toda "pessoa tem direito ao trabalho,
à livre escolha do trabalho, a condições eqüitativas e satisfatórias de
trabalho e à proteção contra o desemprego", como recomenda o artigo 23 da
Declaração da OIT relativa aos princípios e direitos fundamentais no trabalho.
Notas: (1) Acidente que ocorre nas dependências da empresa. (2) Órgão do
governo que processa informações a partir dos dados de benefícios.
*
Margarida Barreto, Médica do trabalho, assessora do Sindicato dos Trabalhadores
Químicos e Plásticos de São Paulo. Prof. Universitária. Autora do livro:
Violência, saúde, trabalho - Uma jornada de humilhações, publicado pela EDUC -
EDITORA DA PUC-SP, 2000. E-mail: correio@assediomoral.org. Site:
www.assediomoral.org
**
Luiz Salvador é Presidente da ABRAT (www.abrat.adv.br), Presidente da ALAL
(www.alal.la), Representante Brasileiro no Depto. de Saúde do Trabalhador da
JUTRA (www.jutra.org), assessor jurídico da AEPETRO e da ATIVA, membro
integrante do corpo técnico do Diap e Secretário Geral da CNDS do Conselho
Federal da OAB, e-mail: luizsalv@terra.com.br, site: www.defesadotrabalhador.com.br
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