segunda-feira, 11 de agosto de 2014

TERCEIRIZANDO O DIREITO & A TERCEIRIZAÇÃO REVISITADA: As faces ocultas da terceirização, uma "mix"de velhos textos e novas ideias.



   As faces ocultas da terceirização: Uma “mix” de velhos textos e novas ideias

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 Márcio Túlio Viana (*)
                                                                                            

1.      Uma explicação necessária

Esse artigo não é exatamente inédito. Em grande parte, reproduz trechos já escritos e publicados pelo autor. Aproveita especialmente o artigo  “Terceirizando o Direito” e, em dose menor, o texto “A terceirização revisitada”. No entanto, procura deixar mais clara a essência do problema e traz algumas colocações novas.

2. Superando a contradição

Desde as suas origens, o capitalismo vem tentando superar uma contradição que ele mesmo criou: a de ter de reunir para produzir, sem poder evitar os efeitos unificantes dessa reunião.

Como sabemos, foi a fábrica, basicamente, quem agregou os trabalhadores, viabilizando o sindicato; e foi o sindicato quem forjou – direta ou indiretamente - o Direito do Trabalho, opondo-se aos excessos do sistema.

Mesmo em países como o Brasil, a pressão existiu[1]; e, ainda que menos forte, foi levada em conta, pois o que se quis – entre outras coisas -  foi evitar que o sindicato nascente  ameaçasse a estrutura de poder.

Além disso, mesmo as normas que trouxemos da Europa chegaram banhadas de sangue. Assim, de um modo ou de outro, o sindicato esteve sempre presente –  não importa muitoquando ou aonde

E a construção do Direito do Trabalho não se deu, é claro,  de uma só vez, nem apenas formalmente. Ao longo dos tempos, a pressão operária não só continuou a produzi-lo, de variadas maneiras, como lhe adicionou uma sanção paralela – a greve -  aumentando um pouco sua efetividade - sempre desafiada e precária.

Hoje, essa contradição parece estar sendo  superada, e uma das razões mais importantes é exatamente a terceirização. E isso é fácil de ver, se analisarmos as suas  duas espécies.

É que, em nosso país, a palavra “terceirização” tem sido usada em dois sentidos, ou para duas situações diferentes: a) quando a empresa externaliza suas etapas de produção; b) quando a empresa internaliza trabalhadores alheios.

A primeira forma evoluiu em meados do século XX, na indústria de automóveis, e hoje, como sabemos, espalha-se por quase  todos os lugares. Já a segunda faz sucesso há menos tempo, embora tenha origens ainda mais remotas: basta lembrar, por exemplo,  que na Grécia antiga já se alugavam escravos para o trabalho nas minas.

Enquanto a primeira forma de terceirizar – ao lançar para fora  etapas do ciclo produtivo - fragmenta objetivamente  os trabalhadores,  a segunda os divide também subjetivamente, opondo terceirizados a empregados comuns.

Assim, pelo menos em termos de tendência, já se pode pensar em  produzir sem reunir, e até mesmo em reunir sem unir. Os trabalhadores estão menos juntos nos dois sentidos – físico e emocional ou psíquico.

E a consequência se faz presente no Direito do Trabalho, que é um Direito diferente - pois como opõe os que têm aos que não têm os meios de produção, está sendo sempre tensionado, e depende em boa dose da força coletiva.

Assim, em todo o mundo, praticamente, as fontes materiais do Direito do Trabalho vão se tornando menos presentes -  e isso quando o próprio conteúdo de suas matérias não se inverte. Além disso, o grau de efetividade decresce.

Em outras palavras: depois de expropriar os trabalhadores dos modos de produzir e de defender suas vidas, o capital os expropria dos meios de produzir e defender  suas leis.

Antes, a mesma fábrica – grande, vertical, homogeneizadora – que explorava os homens também lhes permitia, paradoxalmente, reduzir a exploração. Se de um lado dividia o trabalho, ao mesmo tempo somava os trabalhadores.

Nesse sentido, talvez se possa concluir até que a alienação produzida pela linha de montagem atuava como fator favorável à luta coletiva, na medida em que o empregado podia encontrar no sindicato a identidade, o orgulho e a satisfação que o trabalho lhe sonegava.

É verdade que essa hipótese parece incompatível com a  realidade brasileira, onde o sindicato viveu, por muito tempo, atrelado ao Estado; mas mesmo esse atrelamento, na prática, nunca foi absoluto, e por isso não impediu experiências libertárias – como as que criaram as centrais sindicais, só para citar um exemplo.

Mas o que importa mesmo é notar que as relações de trabalho  vêm sofrendo uma profunda transformação. Hoje, a fábrica se dissolve – repartindo-se -  e desse modo se resolve,  pois vai dissolvendo também os encontros, tanto físicos quanto subjetivos.   Mesmo quando o trabalho se recompõe, tornando-se menos dividido, os trabalhadores já não se somam como antes.  

Por tudo isso, a terceirização não é apenas o que parece ser. Mais do que uma nova técnica de estruturar a empresa, ou  de produzir  de forma flexível, ou de enfrentar a concorrência,  ou mesmo de reduzir os custos (como a acusam tantas vezes com razão), ela esconde uma estratégia de poder.

Ela enfraquece, corrompe e – tendencialmente – até elimina o sindicato, pelo menos enquanto inventor e sancionador  de um verdadeiro Direito Social[2]; e assim,  por extensão, também enfraquece, corrompe e (no limite) pode até eliminar esse mesmo Direito, pelo menos enquanto meio importante de redistribuir riquezas.[3]

No entanto, há outro ponto -  essencial - que às vezes passa despercebido: quando se trata da dignidade do trabalhador, no sentido mais profundo da expressão, as duas formas de terceirizar podem gerar efeitos distintos.

É o que tentarei mostrar mais além.

3.Para diferençar as duas formas

Vimos que numa das formas de terceirização a empresa leva para fora etapas de seu ciclo produtivo; ao passo que na outra traz para dentro trabalhadores alheios.

Se atentarmos para o lugar onde essas duas formas de terceirização em geral se desenvolvem, podemos chamar a primeira de externa e a segunda de interna. Mas ainda que adotemos essa terminologia – como faremos aqui - é preciso admitir que a diferença relacionada com o lugar é relativa. 

De fato, pode acontecer – mesmo por exceção - que a empresa externalize  etapas de seu ciclo produtivo, mas suas parceiras atuem na mesma planta, num único ambiente – como ocorre em algumas fábricas de automóveis.  Outras vezes, inversamente, a empresa internaliza empregados de outra, mas esses trabalhadores permanecem fora dela – como é o caso de alguns call-centers.

Assim, para entender melhor as diferenças e os  significados das duas formas de terceirização, talvez seja interessante voltarmos a uma velha e sábia lição de Olea, ao comparar o trabalho por conta própria com o trabalho por conta alheia[4].

No trabalho por conta própria, o produto pertence ao trabalhador do início ao fim do processo produtivo. O artesão faz o seu cesto de vime e só num segundo momento o transfere – se quiser – para as mãos do comprador. 

Já no trabalho por conta alheia, o produto vai passando imediatamente para o empresário,em tempo real, na medida em que está sendo fabricado. É como se, pouco a pouco, o cesto do artesão fosse escorrendo de suas mãos e encontrando as mãos do outro.   

Pois bem. A terceirização externa, como dizíamos, lembra o trabalho por conta própria. Uma empresa contrata a outra, mas o que lhe interessa é o produto final. Por isso, só ao término da produção passa a ter propriedade sobre ele. Já a terceirização interna se articula com o trabalho por conta alheia.

4. O digno e o indigno nas duas formas de terceirizar

Considerada em si mesma, a primeira espécie de terceirização – que faz a empresa  se organizar em rede -  não é mais nem menos aviltante do que qualquer outra forma de trabalho por conta alheia. Em princípio, para o operário, não faz diferença trabalhar para quem fabrica parafusos ou para quem se serve deles para montar geladeiras.[5]

Vista essa mesma questão sob o ângulo da empresa, não há diferença de fundo entre duas fábricas, cada qual especializada num certo tipo de relógio – de pulso ou de parede, por exemplo – e entre duas outras, cada qual produzindo uma parte do mesmo tipo de  relógio – seja a pulseira, o mecanismo ou o vidro. Aliás, nas atividades mais complexas  – como na indústria de aviões ou de computadores – chega a ser  quase impensável a produção inteira a cargo de um único fabricante.

É verdade que a precariedade tende a aumentar na medida em que  se avança para as últimas malhas da rede. E isso não só porque as parceiras costumam ser cada mais frágeis, como porque são menos visíveis –  a tal ponto que as situadas nas bordas mais distantes podem se esconder até nos porões de um velho prédio ou num fundo de quintal.

Nesse caso, então, o que a grande empresa não pode fazer, a pequena faz por ela: paga pouco, sonega direitos, usa  máquinas velhas e perigosas, ignora normas de prevenção de acidentes. E tudo isso, naturalmente, barateia os contratos: a pequena passa a ter condições de cobrar da grande um preço menor pelas peças que fabrica.

Ora, ao pagar um preço menor, a grande empresa se faz  cúmplice das práticas  aviltantes da pequena. E esse aviltamento, imposto indiretamente pela primeira, pode se tornar verdadeira condição de sobrevivência da segunda, que trava uma luta de morte com outras candidatas a parceiras

Esse fenômeno, ao recrudescer, trouxe de volta realidades que pareciam em declínio – como o trabalho escravo ou infantil; e pôs em contato, em relação de simbiose,   empresas de ponta com fazendas ou oficinas clandestinas. 

Essa mistura - do grande com o pequeno, do velho com o novo, do robô com o operário, do empregado de avental branco com o lavrador descalço ou o imigrante sem papéis – pode sugerir uma transição entre dois modelos; estaríamos, assim, vivendo um presente ainda impreciso, a meio caminho entre o passado e o futuro. Mas também é possível concluir, inversamente, que o novo modelo é exatamente isso, essa mistura, o que indicaria que o futuro já chegou.

De todo modo, como eu dizia, esse modo de organizar a empresa – se considerado em si mesmo -  nada tem de  particularmente degradante. Por mais que seja recorrente,  a precariedade é circunstancial. Não compõe necessariamente o modelo.  Aliás, aqui ou ali, a situação pode até se inverter, como acontece ou acontecia (só para citar um exemplo famoso) na chamada “Terceira Itália”[6].

Por isso, nessa forma de terceirização, é possível corrigir certos efeitos,  pelo menos do ponto de vista do homem trabalhador, visto individualmente.  Basta aplicarmos o art. 2º §2º da CLT, que trata do grupo econômico, com os cuidados de elastecermos o conceito de grupo e de concluirmos  pela presença de um empregador único.[7]

Permanece, é verdade, aquele outro efeito, relacionado com o coletivo. Quanto mais a empresa se parte, mais ela reparte objetivamente a classe operária, ainda que cada segmento possa se manter subjetivamente unido. Mas essa é uma realidade com a qual o sindicato e o próprio Direito devem aprender a conviver, pois não se pode esperar que uma fábrica de bicicletas produza desde os seus pneus até as peças do câmbio ou o plástico dopisca pisca, e menos ainda que uma fábrica de cervejas também produza bicicletas.

Já na segunda forma de terceirizar, repito, as coisas são bem diferentes. O que se produz, aqui, não são parafusos ou geladeiras, mas  o próprio trabalhador. Ele se coisifica da maneira mais completa possível. O empregador já não compra ou aluga simplesmente a força de trabalho;  aluga o trabalhador  por inteiro – ossos, cérebro, músculos -  e em seguida o subloca a outra empresa, ganhando na diferença de preço. 

Por adquirir uma segunda natureza – a de coisa – esse homem pouco se identifica com o outro -  o empregado da tomadora - mesmo estando ao seu lado. À maneira dos antigos escravos ou das vacas de uma fazenda, ele tem a sua marca, que é também o seu estigma.

Por igual razão, ele está livre para ser negociado como um cacho de bananas e largado sem cerimônia num ou noutro galpão, à espera de alguém que o recicle. E não apenas édescascado de sua condição humana, como também está sujeito, por isso mesmo, a ser jogado no lixo rua com muito mais naturalidade[8].

Esse homem-coisa se sente diminuído aos seus próprios olhos, pois  não é – sequer minimamente – dono de seu destino. E se é verdade que num caso ou noutro pode acabar se habituando a essa nova condição, é difícil saber o que seria mais trágico. 

Dizem[9] que  na Itália, onde o emprego doméstico ainda é pouco comum, muitas famílias deixam seus cachorros na rua quando viajam nas  férias de agosto;  na volta, simplesmente compram ou recolhem outros, e assim vão vivendo, de férias em férias, de cachorro em cachorro. Essa situação não lembra a do terceirizado?

É verdade que a relação de emprego comum também carrega  traços de mercadoria. Mas essa natureza mercantil está presente mais na força de trabalho do que no trabalhador considerado em si mesmo – por mais que não se possa dissociá-los por completo.

Assim é que nas entrevistas de seleção, por exemplo, ao menos lhe informam aonde irá trabalhar, não costumam despejá-lo aqui ou ali, sem preaviso, e exploram a sua energia em razão do que ela produz. Não o alugam como faz um sitiante quando o vizinho lhe pede o trator;  não ganham dinheiro negociando o seu corpo,  como  age o cafetão com asmulheres da vida.  E isso faz toda a diferença.

Embora a empresa que cede o trabalhador não possa legalmente lhe cobrar qualquer taxa,[10] é evidente que o faz -  por vias travessas -   ao encurtar seu salário.  Aliás, não fosse assim, seria mesmo inviável terceirizar, pois não  haveria de onde extrair o lucro. Não é preciso ser economista para concluir que é exatamente essa diferença que explica o processo, em termos econômicos. 

Mas não é só. Essa prática opõe trabalhadores a trabalhadores, degradando o próprio grupo, enquanto classe. O terceirizado ambiciona o cargo do empregado comum – e este sente o risco de se tornar terceirizado. Um despreza ou inveja o outro; ao menos em potência, disputam este bem valioso e escasso que é o emprego mais seguro e mais valorizado socialmente. Assim - e de um modo mais intenso do que nunca -  a empresa consegue externalizar para a classe operária a própria lógica da concorrência. 

Pois bem. Vimos que alguns dos efeitos perversos da primeira forma de terceirizar -  os que afetam diretamente o trabalhador – podem ser neutralizados pela lei. No caso, a lei seria especialmente o art. 2º § 2º da CLT, que trata do grupo econômico.  

Já os da segunda, não. A menos, é claro, que venha a ser proibida.  E  isso poderia ser feito até mesmo sem lei específica, já que se trata de trabalho indigno, e a Constituição assegura exatamente o oposto[11]. No entanto, o contexto político conspira contra a solução jurídica.  

Ora, é impossível conviver com a terceirização sem conviver também com sua naturezacoisificante. Se, na terceirização externa, o trabalho indigno  (mesmo existindo com frequência) é circunstancial, na interna  compõe a própria essência do modelo.  Dai por quê ela sempre precariza – seja qual for o salário ou a condição de saúde do trabalhador. A menos, é claro, que se reduza o conceito de indignidade ou de precarização.  

E a mesma conclusão nos serve se a analisarmos do ponto de vista da fraude.  Em geral,  quando nos deparamos com uma terceirização, só falamos em fraude quando a empresa  trai os fins da norma. Mas a grande fraude, na verdade, é   a própria terceirização. Ela está contida na própria norma que a prevê.

Como já observava, essa prática degrada  não só os terceirizados, e nem apenas os trabalhadores em geral – o que já seria muito -  mas o próprio Direito do Trabalho como um todo. Nesse sentido, falar em “terceirização fraudulenta” chega a ser redundante.

Por tudo isso, se não se quer ou não se consegue proibir essa forma de terceirizar,   o que  se pode combater,  basicamente, é apenas o salário menor, as condições ambientais pioresou a representação sindical mais frágil - o que está longe de ser tudo, mas também está longe de ser pouco

E é possível também, reduzir o número de suas vítimas – inserindo limites e condições para que se possa terceirizar.  Na verdade, é exatamente isso o que faz – de forma importante, a meu ver - a Súmula no. 331   do TST.

Naturalmente, como dizem os chineses, tudo ou quase tudo na vida tem o seu lado yin e o seu lado yang, e é possível ver naquela Súmula uma forma de legitimar a onda terceirizante, reforçando o processo de flexibilização. E é inegável que – até certo ponto – isso realmente acontece.

Mas prefiro ver as coisas de outro modo. A onda é realmente forte, mas foi também por isso que o Direito – como filho do sistema - teve de se compor com ela. E é nessa postura – quase humilde – que ele mostra sua inteligência, pois minimiza os estragos e introduz uma cunha – ou contradição – na nova arquitetura que o sistema tenta construir.

E essa cunha é tão relevante  que tem provocado as fortes  investidas do bloco conservador não só junto ao Congresso Nacional – a exemplo do recente PL n.  4330 – como no Supremo Tribunal Federal. Na verdade, são táticas diferentes para viabilizar a mesma estratégia.

Não custa insistir que mesmo com os atuais critérios persistem a indignidade e a fraude, além de uma discriminação tão grande, e ao mesmo tempo tão naturalizada, que a respiramos sem sentir, como fazemos com o ar.  Mas sem aqueles critérios,  naturalmente,  a situação se agravaria muito mais.

Em favor da terceirização, costuma-se argumentar, no plano político ou econômico, que só assim a indústria nacional se tornará competitiva. Mas o argumento prova demais, pois a ser assim deveríamos então eliminar todo o Direito do Trabalho, pois dessa forma nem a China nos alcançaria...

Na verdade, como diz um expert em Administração de Empresas[12], a busca da qualidade total – nela incluída a redução de custos – é um processo que não tem fim. A  redução dos patamares sociais só ajuda a provocar novas comparações e em seguida novas reduções.

Em desfavor da Súmula n. 331 do TST, costuma-se criticar sobretudo o critério de distinção que separa as atividades-meio das atividades-fim. Seria discriminatório e artificial, causando incertezas.

Ora, a verdadeira – ou maior – discriminação é a que segmenta o universo operário, opondo terceirizados a não terceirizados em geral. Se (ainda) não é viável, concretamente, impedi-la, a solução encontrada pela jurisprudência não diminui – mas ao contrário, aumenta - de importância.  

Quanto ao critério em si, sabemos todos que a atividade é fim quando se relaciona em linha reta não só com o objeto da atividade empresarial, mas com a própria causa que deu origem à empresa – seja ela fabricar relógios ou divulgar  conhecimento. E para os casos de fronteira – que não são muitos - basta aplicar o princípio jurídico da interpretação mais favorável ao trabalhador.

A hipótese dos call-centers pode se encaixar aí. A lei  permite a terceirização “inerente” a esta atividade. Mas como já fez notar a Ministra Rosa Maria, hoje abrilhantando o STF,  os dicionários dão àquela palavra vários sentidos, que vão do essencial ao pertinente. Se adotarmos, como devemos, o benefício da dúvida, teremos de concluir que “inerente”, no caso, significa apenas “pertinente”.

Ora, sendo assim, devemos inferir que a lei mantém o critério da Súmula. Ou seja: só pode haver terceirização na atividade meio. Aliás, é o que também recomenda um princípio ainda mais importante, e que não é apenas do Direito do Trabalho – o princípio da dignidade humana.

Pois bem. A atividade da operadora de call center é fim, e não meio. Como certa vez ponderou a Ministra Maria Calsing, do TST, o atendimento ao cliente é previsto enquanto obrigação da empresa até pelo Código do Consumidor. No mínimo, teremos aqui, mais uma vez, dúvida razoável, que atrai o princípio do in dubio pro operario.  

Na verdade, a importância de se restringir a terceirização em atividade fim pode ser percebida até pela forte pressão contrária exercida pelas empresas que terceirizam. 

4. Algumas palavras a mais sobre o Direito do Trabalho

Ao longo de sucessivas décadas, o Direito do Trabalho foi se construindo em torno de um projeto. Nos anos gloriosos, que pareciam não ter fim, a idéia era fazer de todo homem um empregado e de todo empregado um consumidor – redistribuindo rendas e realimentando o ciclo produtivo.

Hoje, o Direito do Trabalho sofre fortes pressões contrárias,  inclusive ideológicas; e tende a ser – como acontece, em dose menor, com outros ramos jurídicos – muito mais reativo, pragmático, circunstancial. Em tempos de poucos sonhos e bandeiras, o seu próprio projeto entra em crise, o que o faz ser questionado por dentro.

Nesse novo contexto, infelizmente, a (re)construção desse importante ramo jurídico passa a depender não apenas  do jogo de forças entre o capital e o trabalho, mas de iniciativas  isoladas de atores que nem sempre avaliam o que pode acontecer.  

Aliás, num tempo como o de hoje, parece que tudo pode acontecer: para o bem e para o mal, as idéias correm livres, soltas e leves, como as folhas que os ventos arrancam das árvores. Ligam-se apenas circunstancialmente a um ou outro argumento, que esconde quase sempre uma aspiração econômica.

Até certo ponto, essa aspiração parece estar em sintonia com os movimentos de rua, com as relações humanas em geral e com a própria crise da regra jurídica. Em todos os lugares, respira-se, hoje, um clima de maior liberdade, que acaba potencializando o credo neoliberal – pois também a empresa exige ser leve, livre e solta, desgarrada das amarras jurídicas.

No entanto, a aparente sintonia não pode justificar o fim das amarras, já que – no plano das relações laborais – a desigualdade de forças não só continua, como se aprofunda. Hoje, ainda mais do que antes, mantém-se atual a visão de Lacordaire, segundo a qual  “entre o fraco e o forte, entre o rico e o pobre, é a liberdade que escraviza, é a lei que liberta”.

A propósito, observa com razão Mauricio Godinho Delgado[13] que o País vai bem, em ambiente de quase pleno emprego; e não há nada – nem mesmo no plano econômico – que justifique propostas para ampliar as terceirizações.

E na verdade o risco é ainda maior do que parece.

À primeira vista, as consequências seriam apenas de ordem quantitativa. Haveria  uma transformação crescente e  massiva de empregados comuns em terceirizados, como se o mundo do trabalho  fosse invadido pelo virus da peste.

Até onde se pode ver, esse cenário, realmente, parece provável. E os efeitos para os terceirizados seriam provavelmente catastróficos, não só em relação aos direitos trabalhistas, em sentido estrito, como no tocante à saúde e à segurança no trabalho.

Mas as vítimas não seriam apenas eles, por mais numerosos que fossem. Seriam também os outros, os remanescentes, pois aumentaria a pressão geral, para baixo, sobre os salários e condições de trabalho  – potencializando a competição e o medo. 

Mais ainda do que isso, porém, todo o Direito do Trabalho sofreria um abalo. E até as subjetividades sofreriam transformações.

De fato, num contexto assim, de autêntica e generalizada marchandage, qual sentido assumiria o princípio da proteção? E quais outras criaturas estranhas não entrariam depois por aquela porta? Como fazer valer  a CLT, se até uma pequena lei, ou uma simples súmula, for capaz de desafiar e até de ridicularizar a própria essência do Direito do Trabalho? Qual seria a postura dos novos juizes, ao aplicar as antigas normas, se até mesmo o trabalho indigno se naturalizaria, a ponto de se tornar uma regra jurídica?

E como evitar novas investidas aviltantes se o Direito do Trabalho, em última análise, estaria todo impregnado e deturpado pela idéia da terceirização? Como pretender que o sindicato  atue, ajudando a criar e a reforçar o Direito estatal, se esse mesmo Direito conspira contra ele? O que esperar desse novo trabalhador – em seus variados papéis de empregado, pai de família ou cidadão que constrói seu país – se ele se vê ou se sente não como homem inteiro, mas como um homem-coisa, que pode até acabar se habituando com isso?          

São questões para se pensar. 



(*). Professor na Pós-Graduação da PUC-Minas.
[1] Cf. a propósito BIAVASCHI, Magda.  Direito do Trabalho no Brasil: 1930-1942. São Paulo: LTr.
[2] Como o chamava, entre nós, o grande Cesarino Júnior.
[3] A propósito dessa função do Direito do Trabalho, cf. DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 2012, passim.
[4] Olea, Alonso. Introdução ao Direito do Trabalho. Coimbra: Alamedina, 1965, passim.
[5] É verdade que às vezes o valor que a sociedade confere ao produto acaba se refletindo no valor que ela confere ao produtor, ou seja, ao trabalhador. Assim, por exemplo, o operário que trabalha numa fábrica de computadores tende a ser mais valorizado do que o mecânico de uma oficina de conserto de geladeiras, ainda que ambos possam ter baixa qualificação. Mas o fato de uma empresa externalizar parte de sua produção não conduz, necessariamente, a uma depreciação do trabalho executado pelos empregados de suasparceiras.
[6] A expressão ganhou fama por volta dos anos 90, quando começaram a surgir no norte daquele país empresas pequenas, sofisticadas e altamente especializadas, muitas delas voltadas para a exportação,  e que forneciam elementos para as grandes. No início, o fenômeno foi visto por alguns sociólogos como a antecipação de uma realidade que se tornaria globalmente presente.
[7] Como se sabe, há duas interpretações possíveis em relação àquele artigo. Pode-se entender, de um lado, que a solidariedade das empresas do grupo é apenas passiva, ou seja, para efeito de pagar créditos do empregado, ou que também é ativa, ou seja, para efeito de cobrar dele o trabalho, o que as tornariam – todas – empregadoras.Em outras palavras, haveria um empregador aparente (o contratante formal)  e um empregador real ((o proprio grupo). Neste último sentido sinaliza (com alguma reserva) a Súmula 129 do TST.
[8] O descarte constante de pessoal só não acontece assim no setor público, de vez que, como sabemos, as empresas se sucedem e os trabalhadores permanecem.
[9] Relato da amiga Lorena Vasconcelos Porto, brilhante Procuradora do Trabalho.
[10] Essa proibição está explícita na lei do trabalho temporário.
[11] Pode-se também acenar com a aplicação do  princípio que veda o retrocesso, tão bem exposto por Daniela Muradas (O princípio da vedação do retrocesso no Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 2010).
[12] Salvo engano, Chiavenatto.
[13] Em conferência no Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região, dia 27 de setembro de 2013, quando foi homenageado.

(*) Márcio Túlio Viana, ex-Magistrado do Trabalho, aposentado, jurista e atualmente professor na Pós-Graduação da PUC-Minas (Faculdade de Direito, Universidade Federal de Minas Gerais).

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