As faces ocultas da terceirização: Uma “mix” de velhos textos e novas ideias
Márcio Túlio Viana (*)
1. Uma explicação necessária
Esse artigo não é exatamente inédito. Em grande parte, reproduz trechos já escritos e publicados pelo autor. Aproveita especialmente o artigo “Terceirizando o Direito” e, em dose menor, o texto “A terceirização revisitada”. No entanto, procura deixar mais clara a essência do problema e traz algumas colocações novas.
2. Superando a contradição
Desde as suas origens, o capitalismo vem tentando superar uma contradição que ele mesmo criou: a de ter de reunir para produzir, sem poder evitar os efeitos unificantes dessa reunião.
Como sabemos, foi a fábrica, basicamente, quem agregou os trabalhadores, viabilizando o sindicato; e foi o sindicato quem forjou – direta ou indiretamente - o Direito do Trabalho, opondo-se aos excessos do sistema.
Mesmo em países como o Brasil, a pressão existiu[1]; e, ainda que menos forte, foi levada em conta, pois o que se quis – entre outras coisas - foi evitar que o sindicato nascente ameaçasse a estrutura de poder.
Além disso, mesmo as normas que trouxemos da Europa chegaram banhadas de sangue. Assim, de um modo ou de outro, o sindicato esteve sempre presente – não importa muitoquando ou aonde
E a construção do Direito do Trabalho não se deu, é claro, de uma só vez, nem apenas formalmente. Ao longo dos tempos, a pressão operária não só continuou a produzi-lo, de variadas maneiras, como lhe adicionou uma sanção paralela – a greve - aumentando um pouco sua efetividade - sempre desafiada e precária.
Hoje, essa contradição parece estar sendo superada, e uma das razões mais importantes é exatamente a terceirização. E isso é fácil de ver, se analisarmos as suas duas espécies.
É que, em nosso país, a palavra “terceirização” tem sido usada em dois sentidos, ou para duas situações diferentes: a) quando a empresa externaliza suas etapas de produção; b) quando a empresa internaliza trabalhadores alheios.
A primeira forma evoluiu em meados do século XX, na indústria de automóveis, e hoje, como sabemos, espalha-se por quase todos os lugares. Já a segunda faz sucesso há menos tempo, embora tenha origens ainda mais remotas: basta lembrar, por exemplo, que na Grécia antiga já se alugavam escravos para o trabalho nas minas.
Enquanto a primeira forma de terceirizar – ao lançar para fora etapas do ciclo produtivo - fragmenta objetivamente os trabalhadores, a segunda os divide também subjetivamente, opondo terceirizados a empregados comuns.
Assim, pelo menos em termos de tendência, já se pode pensar em produzir sem reunir, e até mesmo em reunir sem unir. Os trabalhadores estão menos juntos nos dois sentidos – físico e emocional ou psíquico.
E a consequência se faz presente no Direito do Trabalho, que é um Direito diferente - pois como opõe os que têm aos que não têm os meios de produção, está sendo sempre tensionado, e depende em boa dose da força coletiva.
Assim, em todo o mundo, praticamente, as fontes materiais do Direito do Trabalho vão se tornando menos presentes - e isso quando o próprio conteúdo de suas matérias não se inverte. Além disso, o grau de efetividade decresce.
Em outras palavras: depois de expropriar os trabalhadores dos modos de produzir e de defender suas vidas, o capital os expropria dos meios de produzir e defender suas leis.
Antes, a mesma fábrica – grande, vertical, homogeneizadora – que explorava os homens também lhes permitia, paradoxalmente, reduzir a exploração. Se de um lado dividia o trabalho, ao mesmo tempo somava os trabalhadores.
Nesse sentido, talvez se possa concluir até que a alienação produzida pela linha de montagem atuava como fator favorável à luta coletiva, na medida em que o empregado podia encontrar no sindicato a identidade, o orgulho e a satisfação que o trabalho lhe sonegava.
É verdade que essa hipótese parece incompatível com a realidade brasileira, onde o sindicato viveu, por muito tempo, atrelado ao Estado; mas mesmo esse atrelamento, na prática, nunca foi absoluto, e por isso não impediu experiências libertárias – como as que criaram as centrais sindicais, só para citar um exemplo.
Mas o que importa mesmo é notar que as relações de trabalho vêm sofrendo uma profunda transformação. Hoje, a fábrica se dissolve – repartindo-se - e desse modo se resolve, pois vai dissolvendo também os encontros, tanto físicos quanto subjetivos. Mesmo quando o trabalho se recompõe, tornando-se menos dividido, os trabalhadores já não se somam como antes.
Por tudo isso, a terceirização não é apenas o que parece ser. Mais do que uma nova técnica de estruturar a empresa, ou de produzir de forma flexível, ou de enfrentar a concorrência, ou mesmo de reduzir os custos (como a acusam tantas vezes com razão), ela esconde uma estratégia de poder.
Ela enfraquece, corrompe e – tendencialmente – até elimina o sindicato, pelo menos enquanto inventor e sancionador de um verdadeiro Direito Social[2]; e assim, por extensão, também enfraquece, corrompe e (no limite) pode até eliminar esse mesmo Direito, pelo menos enquanto meio importante de redistribuir riquezas.[3]
No entanto, há outro ponto - essencial - que às vezes passa despercebido: quando se trata da dignidade do trabalhador, no sentido mais profundo da expressão, as duas formas de terceirizar podem gerar efeitos distintos.
É o que tentarei mostrar mais além.
3.Para diferençar as duas formas
Vimos que numa das formas de terceirização a empresa leva para fora etapas de seu ciclo produtivo; ao passo que na outra traz para dentro trabalhadores alheios.
Se atentarmos para o lugar onde essas duas formas de terceirização em geral se desenvolvem, podemos chamar a primeira de externa e a segunda de interna. Mas ainda que adotemos essa terminologia – como faremos aqui - é preciso admitir que a diferença relacionada com o lugar é relativa.
De fato, pode acontecer – mesmo por exceção - que a empresa externalize etapas de seu ciclo produtivo, mas suas parceiras atuem na mesma planta, num único ambiente – como ocorre em algumas fábricas de automóveis. Outras vezes, inversamente, a empresa internaliza empregados de outra, mas esses trabalhadores permanecem fora dela – como é o caso de alguns call-centers.
Assim, para entender melhor as diferenças e os significados das duas formas de terceirização, talvez seja interessante voltarmos a uma velha e sábia lição de Olea, ao comparar o trabalho por conta própria com o trabalho por conta alheia[4].
No trabalho por conta própria, o produto pertence ao trabalhador do início ao fim do processo produtivo. O artesão faz o seu cesto de vime e só num segundo momento o transfere – se quiser – para as mãos do comprador.
Já no trabalho por conta alheia, o produto vai passando imediatamente para o empresário,em tempo real, na medida em que está sendo fabricado. É como se, pouco a pouco, o cesto do artesão fosse escorrendo de suas mãos e encontrando as mãos do outro.
Pois bem. A terceirização externa, como dizíamos, lembra o trabalho por conta própria. Uma empresa contrata a outra, mas o que lhe interessa é o produto final. Por isso, só ao término da produção passa a ter propriedade sobre ele. Já a terceirização interna se articula com o trabalho por conta alheia.
4. O digno e o indigno nas duas formas de terceirizar
Considerada em si mesma, a primeira espécie de terceirização – que faz a empresa se organizar em rede - não é mais nem menos aviltante do que qualquer outra forma de trabalho por conta alheia. Em princípio, para o operário, não faz diferença trabalhar para quem fabrica parafusos ou para quem se serve deles para montar geladeiras.[5]
Vista essa mesma questão sob o ângulo da empresa, não há diferença de fundo entre duas fábricas, cada qual especializada num certo tipo de relógio – de pulso ou de parede, por exemplo – e entre duas outras, cada qual produzindo uma parte do mesmo tipo de relógio – seja a pulseira, o mecanismo ou o vidro. Aliás, nas atividades mais complexas – como na indústria de aviões ou de computadores – chega a ser quase impensável a produção inteira a cargo de um único fabricante.
É verdade que a precariedade tende a aumentar na medida em que se avança para as últimas malhas da rede. E isso não só porque as parceiras costumam ser cada mais frágeis, como porque são menos visíveis – a tal ponto que as situadas nas bordas mais distantes podem se esconder até nos porões de um velho prédio ou num fundo de quintal.
Nesse caso, então, o que a grande empresa não pode fazer, a pequena faz por ela: paga pouco, sonega direitos, usa máquinas velhas e perigosas, ignora normas de prevenção de acidentes. E tudo isso, naturalmente, barateia os contratos: a pequena passa a ter condições de cobrar da grande um preço menor pelas peças que fabrica.
Ora, ao pagar um preço menor, a grande empresa se faz cúmplice das práticas aviltantes da pequena. E esse aviltamento, imposto indiretamente pela primeira, pode se tornar verdadeira condição de sobrevivência da segunda, que trava uma luta de morte com outras candidatas a parceiras.
Esse fenômeno, ao recrudescer, trouxe de volta realidades que pareciam em declínio – como o trabalho escravo ou infantil; e pôs em contato, em relação de simbiose, empresas de ponta com fazendas ou oficinas clandestinas.
Essa mistura - do grande com o pequeno, do velho com o novo, do robô com o operário, do empregado de avental branco com o lavrador descalço ou o imigrante sem papéis – pode sugerir uma transição entre dois modelos; estaríamos, assim, vivendo um presente ainda impreciso, a meio caminho entre o passado e o futuro. Mas também é possível concluir, inversamente, que o novo modelo é exatamente isso, essa mistura, o que indicaria que o futuro já chegou.
De todo modo, como eu dizia, esse modo de organizar a empresa – se considerado em si mesmo - nada tem de particularmente degradante. Por mais que seja recorrente, a precariedade é circunstancial. Não compõe necessariamente o modelo. Aliás, aqui ou ali, a situação pode até se inverter, como acontece ou acontecia (só para citar um exemplo famoso) na chamada “Terceira Itália”[6].
Por isso, nessa forma de terceirização, é possível corrigir certos efeitos, pelo menos do ponto de vista do homem trabalhador, visto individualmente. Basta aplicarmos o art. 2º §2º da CLT, que trata do grupo econômico, com os cuidados de elastecermos o conceito de grupo e de concluirmos pela presença de um empregador único.[7]
Permanece, é verdade, aquele outro efeito, relacionado com o coletivo. Quanto mais a empresa se parte, mais ela reparte objetivamente a classe operária, ainda que cada segmento possa se manter subjetivamente unido. Mas essa é uma realidade com a qual o sindicato e o próprio Direito devem aprender a conviver, pois não se pode esperar que uma fábrica de bicicletas produza desde os seus pneus até as peças do câmbio ou o plástico dopisca pisca, e menos ainda que uma fábrica de cervejas também produza bicicletas.
Já na segunda forma de terceirizar, repito, as coisas são bem diferentes. O que se produz, aqui, não são parafusos ou geladeiras, mas o próprio trabalhador. Ele se coisifica da maneira mais completa possível. O empregador já não compra ou aluga simplesmente a força de trabalho; aluga o trabalhador por inteiro – ossos, cérebro, músculos - e em seguida o subloca a outra empresa, ganhando na diferença de preço.
Por adquirir uma segunda natureza – a de coisa – esse homem pouco se identifica com o outro - o empregado da tomadora - mesmo estando ao seu lado. À maneira dos antigos escravos ou das vacas de uma fazenda, ele tem a sua marca, que é também o seu estigma.
Por igual razão, ele está livre para ser negociado como um cacho de bananas e largado sem cerimônia num ou noutro galpão, à espera de alguém que o recicle. E não apenas édescascado de sua condição humana, como também está sujeito, por isso mesmo, a ser jogado no lixo rua com muito mais naturalidade[8].
Esse homem-coisa se sente diminuído aos seus próprios olhos, pois não é – sequer minimamente – dono de seu destino. E se é verdade que num caso ou noutro pode acabar se habituando a essa nova condição, é difícil saber o que seria mais trágico.
Dizem[9] que na Itália, onde o emprego doméstico ainda é pouco comum, muitas famílias deixam seus cachorros na rua quando viajam nas férias de agosto; na volta, simplesmente compram ou recolhem outros, e assim vão vivendo, de férias em férias, de cachorro em cachorro. Essa situação não lembra a do terceirizado?
É verdade que a relação de emprego comum também carrega traços de mercadoria. Mas essa natureza mercantil está presente mais na força de trabalho do que no trabalhador considerado em si mesmo – por mais que não se possa dissociá-los por completo.
Assim é que nas entrevistas de seleção, por exemplo, ao menos lhe informam aonde irá trabalhar, não costumam despejá-lo aqui ou ali, sem preaviso, e exploram a sua energia em razão do que ela produz. Não o alugam como faz um sitiante quando o vizinho lhe pede o trator; não ganham dinheiro negociando o seu corpo, como age o cafetão com asmulheres da vida. E isso faz toda a diferença.
Embora a empresa que cede o trabalhador não possa legalmente lhe cobrar qualquer taxa,[10] é evidente que o faz - por vias travessas - ao encurtar seu salário. Aliás, não fosse assim, seria mesmo inviável terceirizar, pois não haveria de onde extrair o lucro. Não é preciso ser economista para concluir que é exatamente essa diferença que explica o processo, em termos econômicos.
Mas não é só. Essa prática opõe trabalhadores a trabalhadores, degradando o próprio grupo, enquanto classe. O terceirizado ambiciona o cargo do empregado comum – e este sente o risco de se tornar terceirizado. Um despreza ou inveja o outro; ao menos em potência, disputam este bem valioso e escasso que é o emprego mais seguro e mais valorizado socialmente. Assim - e de um modo mais intenso do que nunca - a empresa consegue externalizar para a classe operária a própria lógica da concorrência.
Pois bem. Vimos que alguns dos efeitos perversos da primeira forma de terceirizar - os que afetam diretamente o trabalhador – podem ser neutralizados pela lei. No caso, a lei seria especialmente o art. 2º § 2º da CLT, que trata do grupo econômico.
Já os da segunda, não. A menos, é claro, que venha a ser proibida. E isso poderia ser feito até mesmo sem lei específica, já que se trata de trabalho indigno, e a Constituição assegura exatamente o oposto[11]. No entanto, o contexto político conspira contra a solução jurídica.
Ora, é impossível conviver com a terceirização sem conviver também com sua naturezacoisificante. Se, na terceirização externa, o trabalho indigno (mesmo existindo com frequência) é circunstancial, na interna compõe a própria essência do modelo. Dai por quê ela sempre precariza – seja qual for o salário ou a condição de saúde do trabalhador. A menos, é claro, que se reduza o conceito de indignidade ou de precarização.
E a mesma conclusão nos serve se a analisarmos do ponto de vista da fraude. Em geral, quando nos deparamos com uma terceirização, só falamos em fraude quando a empresa trai os fins da norma. Mas a grande fraude, na verdade, é a própria terceirização. Ela está contida na própria norma que a prevê.
Como já observava, essa prática degrada não só os terceirizados, e nem apenas os trabalhadores em geral – o que já seria muito - mas o próprio Direito do Trabalho como um todo. Nesse sentido, falar em “terceirização fraudulenta” chega a ser redundante.
Por tudo isso, se não se quer ou não se consegue proibir essa forma de terceirizar, o que se pode combater, basicamente, é apenas o salário menor, as condições ambientais pioresou a representação sindical mais frágil - o que está longe de ser tudo, mas também está longe de ser pouco.
E é possível também, reduzir o número de suas vítimas – inserindo limites e condições para que se possa terceirizar. Na verdade, é exatamente isso o que faz – de forma importante, a meu ver - a Súmula no. 331 do TST.
Naturalmente, como dizem os chineses, tudo ou quase tudo na vida tem o seu lado yin e o seu lado yang, e é possível ver naquela Súmula uma forma de legitimar a onda terceirizante, reforçando o processo de flexibilização. E é inegável que – até certo ponto – isso realmente acontece.
Mas prefiro ver as coisas de outro modo. A onda é realmente forte, mas foi também por isso que o Direito – como filho do sistema - teve de se compor com ela. E é nessa postura – quase humilde – que ele mostra sua inteligência, pois minimiza os estragos e introduz uma cunha – ou contradição – na nova arquitetura que o sistema tenta construir.
E essa cunha é tão relevante que tem provocado as fortes investidas do bloco conservador não só junto ao Congresso Nacional – a exemplo do recente PL n. 4330 – como no Supremo Tribunal Federal. Na verdade, são táticas diferentes para viabilizar a mesma estratégia.
Não custa insistir que mesmo com os atuais critérios persistem a indignidade e a fraude, além de uma discriminação tão grande, e ao mesmo tempo tão naturalizada, que a respiramos sem sentir, como fazemos com o ar. Mas sem aqueles critérios, naturalmente, a situação se agravaria muito mais.
Em favor da terceirização, costuma-se argumentar, no plano político ou econômico, que só assim a indústria nacional se tornará competitiva. Mas o argumento prova demais, pois a ser assim deveríamos então eliminar todo o Direito do Trabalho, pois dessa forma nem a China nos alcançaria...
Na verdade, como diz um expert em Administração de Empresas[12], a busca da qualidade total – nela incluída a redução de custos – é um processo que não tem fim. A redução dos patamares sociais só ajuda a provocar novas comparações e em seguida novas reduções.
Em desfavor da Súmula n. 331 do TST, costuma-se criticar sobretudo o critério de distinção que separa as atividades-meio das atividades-fim. Seria discriminatório e artificial, causando incertezas.
Ora, a verdadeira – ou maior – discriminação é a que segmenta o universo operário, opondo terceirizados a não terceirizados em geral. Se (ainda) não é viável, concretamente, impedi-la, a solução encontrada pela jurisprudência não diminui – mas ao contrário, aumenta - de importância.
Quanto ao critério em si, sabemos todos que a atividade é fim quando se relaciona em linha reta não só com o objeto da atividade empresarial, mas com a própria causa que deu origem à empresa – seja ela fabricar relógios ou divulgar conhecimento. E para os casos de fronteira – que não são muitos - basta aplicar o princípio jurídico da interpretação mais favorável ao trabalhador.
A hipótese dos call-centers pode se encaixar aí. A lei permite a terceirização “inerente” a esta atividade. Mas como já fez notar a Ministra Rosa Maria, hoje abrilhantando o STF, os dicionários dão àquela palavra vários sentidos, que vão do essencial ao pertinente. Se adotarmos, como devemos, o benefício da dúvida, teremos de concluir que “inerente”, no caso, significa apenas “pertinente”.
Ora, sendo assim, devemos inferir que a lei mantém o critério da Súmula. Ou seja: só pode haver terceirização na atividade meio. Aliás, é o que também recomenda um princípio ainda mais importante, e que não é apenas do Direito do Trabalho – o princípio da dignidade humana.
Pois bem. A atividade da operadora de call center é fim, e não meio. Como certa vez ponderou a Ministra Maria Calsing, do TST, o atendimento ao cliente é previsto enquanto obrigação da empresa até pelo Código do Consumidor. No mínimo, teremos aqui, mais uma vez, dúvida razoável, que atrai o princípio do in dubio pro operario.
Na verdade, a importância de se restringir a terceirização em atividade fim pode ser percebida até pela forte pressão contrária exercida pelas empresas que terceirizam.
4. Algumas palavras a mais sobre o Direito do Trabalho
Ao longo de sucessivas décadas, o Direito do Trabalho foi se construindo em torno de um projeto. Nos anos gloriosos, que pareciam não ter fim, a idéia era fazer de todo homem um empregado e de todo empregado um consumidor – redistribuindo rendas e realimentando o ciclo produtivo.
Hoje, o Direito do Trabalho sofre fortes pressões contrárias, inclusive ideológicas; e tende a ser – como acontece, em dose menor, com outros ramos jurídicos – muito mais reativo, pragmático, circunstancial. Em tempos de poucos sonhos e bandeiras, o seu próprio projeto entra em crise, o que o faz ser questionado por dentro.
Nesse novo contexto, infelizmente, a (re)construção desse importante ramo jurídico passa a depender não apenas do jogo de forças entre o capital e o trabalho, mas de iniciativas isoladas de atores que nem sempre avaliam o que pode acontecer.
Aliás, num tempo como o de hoje, parece que tudo pode acontecer: para o bem e para o mal, as idéias correm livres, soltas e leves, como as folhas que os ventos arrancam das árvores. Ligam-se apenas circunstancialmente a um ou outro argumento, que esconde quase sempre uma aspiração econômica.
Até certo ponto, essa aspiração parece estar em sintonia com os movimentos de rua, com as relações humanas em geral e com a própria crise da regra jurídica. Em todos os lugares, respira-se, hoje, um clima de maior liberdade, que acaba potencializando o credo neoliberal – pois também a empresa exige ser leve, livre e solta, desgarrada das amarras jurídicas.
No entanto, a aparente sintonia não pode justificar o fim das amarras, já que – no plano das relações laborais – a desigualdade de forças não só continua, como se aprofunda. Hoje, ainda mais do que antes, mantém-se atual a visão de Lacordaire, segundo a qual “entre o fraco e o forte, entre o rico e o pobre, é a liberdade que escraviza, é a lei que liberta”.
A propósito, observa com razão Mauricio Godinho Delgado[13] que o País vai bem, em ambiente de quase pleno emprego; e não há nada – nem mesmo no plano econômico – que justifique propostas para ampliar as terceirizações.
E na verdade o risco é ainda maior do que parece.
À primeira vista, as consequências seriam apenas de ordem quantitativa. Haveria uma transformação crescente e massiva de empregados comuns em terceirizados, como se o mundo do trabalho fosse invadido pelo virus da peste.
Até onde se pode ver, esse cenário, realmente, parece provável. E os efeitos para os terceirizados seriam provavelmente catastróficos, não só em relação aos direitos trabalhistas, em sentido estrito, como no tocante à saúde e à segurança no trabalho.
Mas as vítimas não seriam apenas eles, por mais numerosos que fossem. Seriam também os outros, os remanescentes, pois aumentaria a pressão geral, para baixo, sobre os salários e condições de trabalho – potencializando a competição e o medo.
Mais ainda do que isso, porém, todo o Direito do Trabalho sofreria um abalo. E até as subjetividades sofreriam transformações.
De fato, num contexto assim, de autêntica e generalizada marchandage, qual sentido assumiria o princípio da proteção? E quais outras criaturas estranhas não entrariam depois por aquela porta? Como fazer valer a CLT, se até uma pequena lei, ou uma simples súmula, for capaz de desafiar e até de ridicularizar a própria essência do Direito do Trabalho? Qual seria a postura dos novos juizes, ao aplicar as antigas normas, se até mesmo o trabalho indigno se naturalizaria, a ponto de se tornar uma regra jurídica?
E como evitar novas investidas aviltantes se o Direito do Trabalho, em última análise, estaria todo impregnado e deturpado pela idéia da terceirização? Como pretender que o sindicato atue, ajudando a criar e a reforçar o Direito estatal, se esse mesmo Direito conspira contra ele? O que esperar desse novo trabalhador – em seus variados papéis de empregado, pai de família ou cidadão que constrói seu país – se ele se vê ou se sente não como homem inteiro, mas como um homem-coisa, que pode até acabar se habituando com isso?
São questões para se pensar.
[3] A propósito dessa função do Direito do Trabalho, cf. DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 2012, passim.
[5] É verdade que às vezes o valor que a sociedade confere ao produto acaba se refletindo no valor que ela confere ao produtor, ou seja, ao trabalhador. Assim, por exemplo, o operário que trabalha numa fábrica de computadores tende a ser mais valorizado do que o mecânico de uma oficina de conserto de geladeiras, ainda que ambos possam ter baixa qualificação. Mas o fato de uma empresa externalizar parte de sua produção não conduz, necessariamente, a uma depreciação do trabalho executado pelos empregados de suasparceiras.
[6] A expressão ganhou fama por volta dos anos 90, quando começaram a surgir no norte daquele país empresas pequenas, sofisticadas e altamente especializadas, muitas delas voltadas para a exportação, e que forneciam elementos para as grandes. No início, o fenômeno foi visto por alguns sociólogos como a antecipação de uma realidade que se tornaria globalmente presente.
[7] Como se sabe, há duas interpretações possíveis em relação àquele artigo. Pode-se entender, de um lado, que a solidariedade das empresas do grupo é apenas passiva, ou seja, para efeito de pagar créditos do empregado, ou que também é ativa, ou seja, para efeito de cobrar dele o trabalho, o que as tornariam – todas – empregadoras.Em outras palavras, haveria um empregador aparente (o contratante formal) e um empregador real ((o proprio grupo). Neste último sentido sinaliza (com alguma reserva) a Súmula 129 do TST.
[8] O descarte constante de pessoal só não acontece assim no setor público, de vez que, como sabemos, as empresas se sucedem e os trabalhadores permanecem.
[11] Pode-se também acenar com a aplicação do princípio que veda o retrocesso, tão bem exposto por Daniela Muradas (O princípio da vedação do retrocesso no Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 2010).
[13] Em conferência no Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região, dia 27 de setembro de 2013, quando foi homenageado.
(*) Márcio Túlio Viana, ex-Magistrado do Trabalho, aposentado, jurista e atualmente professor na Pós-Graduação da PUC-Minas (Faculdade de Direito, Universidade Federal de Minas Gerais).
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