Danos morais
Com bagatelização, Judiciário dá respostas desproporcionais
Circunstantes
e leitores: perdoem o neologismo que implica a utilização do verbo
bagatelizar. É que, para os fins a que se destina essa síntese de
raciocínio temperado pela indignação (ou indignação obtemperada pelo
raciocínio?), vivenciamos um estranho tempo da jurisdição da dignidade
humana: a era da dignidade-bagatela.
O
que suscita a manifestação é a notícia divulgada pelo Tribunal Superior
do Trabalho no dia 24 de dezembro de 2013 consubstanciada na chamada:
“Gerente do Itaú será indenizada por ficar em casa de ‘castigo’ por não
cumprir metas.” O tribunal elevou de R$ 1 mil para R$ 10 mil o valor da
indenização concedida a uma gerente de banco que ficou um dia em casa de
"castigo" por não ter cumprido metas fixadas por seu chefe.
Notem
que não estou a discutir o ato em si, considerado ilícito tanto na
instância ordinária quanto na jurisdição superior. Parto da presunção,
agora juris et de jure, de que o trabalhador foi submetido a um ilícito
que há de ser compensado financeiramente por um valor a ser arbitrado
pelo Judiciário.
E
o que se nota, no exato instante em que se passa a tal arbitramento, é o
reforço da barbárie contra a qual a jurisdição se alevanta e,
contraditoriamente, prestigia.
Refiro-me
ao surgimento de "indenizações danosas", ou, propriamente, compensações
arbitradas segundo critérios de valoração jurídica em que o ser humano é
posto como o suposto centro de atenção preferencial do ordenamento
jurídico, mas com a imediata contradição, afirmada pela irrisória
valoração econômica da compensação financeira arbitrada para se
contrapor ao dano moral imposto.
Qual o resultado pedagógico da “indenização” de R$ 10 mil que aquela instituição financeira haverá de pagar?
A
resposta é simples. Se a sociedade não sanciona convenientemente o
ilícito, o ilícito compensa, já que sua compensação é dada por
quantificação de bagatela.
Quantos
gerentes pelo mundo afora não terão sido humilhados e ofendidos pelos
mesmos métodos? Não terá sido, considerada a enorme possibilidade de
haver uma repressão da conflituosidade que a administração de métodos
tais de gestão suscita, lucrativo ao empregador perseverar na prática
ilícita e abusiva, ainda que condenado num caso concreto? Todos terão
reclamado? Serão, por essa compensação agora fixada, incentivados a
trazer seus casos à luz? Ou a decisão, pretensamente adequada aos
ditames constitucionais de valoração da dignidade humana,
proporcionalidade e razoabilidade, não acaba produzindo o nefasto efeito
da sublimação do ilícito pelas demais vítimas, a não compensação da
busca pela compensação pelo dano moral, em processo que demora por anos a
fio e produz, de fio a pavio, um fio de esperança cortado pelo cutelo
da tolerância ao ilícito.
A verdade é que a jurisdição dos danos morais tem se caracterizado pelo reducionismo do problema.
Não
se debatem aspectos estruturais das organizações hierárquicas, que soam
puro ilícito, como a gestão pelo terror, o ambiente ameaçador, os
padrões de conduta exigidos, a imposição de metas abusivas, sempre em
decorrência do anseio patronal pela obtenção cada vez mais metódica do
lucro máximo, não apenas pela absorção do produto do trabalho humano,
mas pelo esgotamento das forças físicas e morais dos trabalhadores e,
por vezes, a captura da própria subjetividade da vítima, que deixa de
ser pessoa, para ser peça do sistema de produção de lucro.
Não
se analisam aspectos como o potencial alcance multitudinário do
ilícito, a possível transindividualidade dos efeitos do comportamento
patronal, a natureza da atividade explorada e as condições econômicas
das organizações agressoras, entre outros diversos aspectos que haveriam
de gizar o arbitramento de compensações por danos morais ocorrentes de
modo tão massificado nas relações de trabalho.
O
ritmo do trabalho, as exigências de produtividade aos juízes
(notadamente aos de primeiro grau), tudo simula e reproduz os mesmos
males contra os quais se erguem os pedidos de compensação por danos
morais e de prestígio da dignidade humana como princípio fundante da
ordem constitucional.
Não
bastassem os males institucionais, incide, ainda, uma enorme carga de
preconceito contra os pleitos de compensação por danos morais, que, até
poucas décadas, sequer eram cogitados.
Taxados
como batatas fritas do menu de pretensões, pedidos que acompanham
quaisquer pratos, os danos morais recebem uma preojeriza, que vai além
do preconceito.
Tudo
isso acaba por contribuir para que o trabalho de perquirição das
circunstâncias de cada lide em que essa temática é envolvida cinja-se à
aferição da existência do fato danoso (materialidade), da identificação
do agressor (autoria) e de uma relação de causa e efeito (nexo de
causalidade) entre o trabalho e o ilícito: famosa tríplice condição para
a indenizabilidade de um ato ou negócio ilícito.
Valor rotulado
Superada a aferição, passa-se ao segundo movimento do drama: a fixação do quantum. Quanto ao arbitramento de valores, o que mais se nota é o critério de precificação pessoal do ilícito. O preço ao bel prazer do precificador. Em cada juiz, um etiquetador dos valores decorrentes de dano moral.
Superada a aferição, passa-se ao segundo movimento do drama: a fixação do quantum. Quanto ao arbitramento de valores, o que mais se nota é o critério de precificação pessoal do ilícito. O preço ao bel prazer do precificador. Em cada juiz, um etiquetador dos valores decorrentes de dano moral.
Incomoda-me
triplamente o modo com que têm sido apreciados, como regra, os pedidos
que decorrem de processos que reclamam compensações financeiras por
danos morais decorrentes de ilícitos patronais, sejam eles produtos de
uma lesão única, um dano moral singelo, sejam vilipêndios continuados em
processos de assédios moral, sexual, processual, aqueles decorrentes de
acidentes de trabalho, enfermidades físico-psíquicas e até mesmo os
casos de danos existenciais.
O
que essas pessoas buscam no Judiciário, muitas vezes, é a compreensão
do problema, a identificação da raiz de tais idiossincrasias entre as
pessoas, que acabam por suscitar os conflitos que se judicializam.
E,
assolados pelo volume, pela gravidade de alguns casos que dá a
aparência de banalidades a outros, que não deixam de ter a sua própria
gravidade e complexidade, pela necessidade de dar cabo rápido das
causas, o Judiciário tem dado respostas desproporcionais,
contraditórias, tudo a suscitar uma profunda insegurança ao sistema.
A
situação é de tal gravidade que, no caso que se tomou como centelha
para a redação deste pequenino artigo, a decuplicação da valoração
originalmente fixado não retirou da compensação outorgada à vítima do
ilícito procedimento patronal a condição de compensação de bagatela. A
vítima, assim, foi duplamente vilipendiada. Receberá uma das tais
“indenizações danosas”.
Tenho
dito que essas indenizações não são propriamente indenização. E não o
são porque danos morais não se eliminam. Não há como tornar indene ou
sem dano aquele que foi vítima de uma agressão à sua integridade física
ou psíquica.
Seria
melhor dizer sempre compensação ou lenitivo. Mas a ideia de lenitivo
não há de se gizar pelo mínimo, nem ser pautada pela preservação do
causador da ilicitude. É preciso debelar o ilícito, expurgar da
sociedade os males da violência contida nas relações hierárquicas de
trabalho. Nesse campo, não cabe administrar um unguento.
“Indenizações”
ou compensações como a vertente acabam por ser, ao revés da ideia de
proporcionar um lenitivo, nova imposição de dano. Verdadeiras
indenizações danosas, expositoras do lesado, que acaba, além de
subcompensado, sobrexposto. Pior que vitória de Pirro, é a derrota
decorrente da bagatelização da dignidade.
No
episódio em apreço, a vítima foi vilipendiada em sua dignidade ao ser
posta de “castigo” pelo empregador de modo desarrazoado, injusto e
abusivo, prática, portanto, ilícita. E teve o vilipêndio aprofundado
quando, não obstante reconhecida a ilicitude do ato patronal, sua
suposta compensação, além de não compensar de fato o fato danoso, foi
fixada a lhe causar uma segunda frustração, um novo dano, pela
irrisoriedade do valor que, mesmo depois de multiplicado por dez, foi
arbitrado como pretensamente próprio à reposição de sua dignidade
ferida.
Trata-se,
portanto, de “indenização” que não deixa alguém indene, sin damnum, mas
com a ferida aberta do passado, não compensada pela irrisoriedade do
valor arbitrado à condenação, e acrescida de nova ferida decorrente da
frustração do sistema judiciário de garantias de sua dignidade, que, ao
fim, sinaliza ao agressor que a prática ilícita compensa.
E
tudo isso se dá, num paradoxo, como sucedâneo ao processo de
valorização do princípio da dignidade humana, que, nas análises
jurídicas dessas lides, quando da aferição do ilícito e da identificação
de um direito à compensação pela prática, tem merecido, no mais das
vezes, correta composição da jurisdição. A contradição, no entanto,
ocorre quando da fixação dos valores de compensação, que acabam por
revelar uma preocupação de preservação do agressor em vez de prestígio
aos valores subjacentes à lide, à compensação a que faz jus o lesado e
ao lenitivo que se deve proporcionar à vítima.
É
como se tais conflitos, decorrentes de danos morais, fossem compostos
pela decomposição da jurisdição em duas vertentes: a jurídica, que
valoriza a dignidade e afere com correção as práticas ilícitas e
condutas patronais que o direito não prestigia; e a econômica, que, não
obstante o discurso anterior de valorização da dignidade humana, na
prática, a reduz e a subordina aos interesses econômicos, acomodando as
indenizações, sob o manto da razoabilidade e proporcionalidade, aos
interesses do condenado.
É
dizer, enfim, à vítima: Parabéns! O senhor foi vítima dos danos morais!
Tenha em conta de que sua dignidade é o valor máximo de proteção da
pessoa humana em nossa ordem jurídica! E leve um brinde do Judiciário,
uma bagatela, que é o valor econômico de sua dignidade.
E que se diga ao algoz: Parabéns! O seu ilícito compensa!
Luís Carlos Moro é
advogado trabalhista, sócio de Moro e Scalamandré Advocacia,
conselheiro e diretor da AASP, ex-presidente da Associação dos Advogados
Trabalhistas de São Paulo (AAT/SP), Associação Brasileira de Advogados
Trabalhistas (ABRAT) e Associação Latinoamericana de Advogados
Trabalhistas e atual coordenador da Secretaria de Direitos Humanos Laborais da ALAL (www.alal.com.br)
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