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E agora, Geraldo?
Jorge Luiz Souto Maior(*)
Não satisfeito com as várias ilegalidades já cometidas contra o direito de greve, ilegalidades estas que, de fato, atingem toda a classe trabalhadora, o governador de São Paulo, que insiste em dizer que “ninguém está acima da lei”, afrontou uma vez mais a ordem jurídica ao determinar a dispensa arbitrária e por justa causa de 42 metroviários.
A arbitrariedade está tanto no procedimento adotado, o envio de um telegrama, com a notícia da dispensa, para as casas dos empregados, como se estes fossem estranhos, quanto no próprio fundamento utilizado:
Informamos o seu desligamento da Companhia por justa causa a partir do dia 09/06/14, com fundamento no artigo 482, alínea “b”, da Consolidação das Leis do Trabalho e no artigo 262 do Código Penal. Fica assegurado o seu direito de interposição do Recurso Administrativo previsto no Acordo Coletivo, no prazo de 3 (três) dias úteis a contar do recebimento deste telegrama. (Enviado no dia 09/06/14, às 10h07)
Vale lembrar que o julgamento da greve se deu no dia 08/06/14 e, portanto, o envio do telegrama às 10h07 do dia 09/06/14 não esteve, obviamente, relacionado a fato praticado após a decisão judicial sobre a greve.
Aliás, não está relacionado a fato algum. O telegrama diz apenas que o empregado está dispensado com base na alínea “b”, do art. 482, da CLT, que trata das figuras mais abertas e de conceituação mais complexa da legislação trabalhista: “incontinência de conduta ou mau procedimento”.
A “incontinência de conduta”, segundo Délio Maranhão[1], caracteriza-se pela vida irregular incompatível com a condição ou com o cargo ocupado pelo empregado. Antônio Lamarca conta que a maioria dos autores relaciona esse tipo à vida sexual desregrada do empregado, com o que, em hipótese alguma, concorda Lamarca, o qual restringe a hipótese a atitudes sexuais desregradas no âmbito da empresa.[2] Amauri Mascaro Nascimento[3] diz que se trata de um comportamento irregular incompatível com a moral sexual, desde que relacionada com o emprego.
Mau procedimento, para Délio Maranhão, “está em todo o ato que revela quebra do princípio de que os contratos devem ser executados de boa-fé.”[4] Antônio Lamarca o restringe a ato doloso praticado com o fim de prejudicar o empregador.[5]
Ambas são fórmulas que não dizem, concretamente, nada, trazendo consigo o grave risco de servirem para dizer tudo, isto é, servirem a qualquer propósito, pois se algo não tem um sentido preciso pode ter qualquer sentido.
Pois bem, fica evidenciado que se utilizou de fórmula aberta, para que depois fosse preenchida, deixando-se, inclusive, o parâmetro jurisprudencial normalmente utilizado para situações análogas, que é o de configurar a conduta do empregado que não retorna ao trabalho após a declaração da ilegalidade da greve como ato de insubordinação (art. 482, “h”, da CLT) ou abandono de emprego (art. 482, “i”, da CLT), sendo que na primeira hipótese ter-se-ia uma gradação que passaria pela advertência e pela suspensão, antes de se chegar à justa causa, e na segunda, somente se completaria após 30 (trinta) dias de faltas.
Para se chegar a uma justa causa por mau procedimento o trabalhador teria que cometer um ato com tal gravidade, totalmente contrário à boa fé, que inviabilizasse por completo a continuidade da relação de emprego, sendo que se teria que levar em consideração também a condição pretérita do trabalhador, pois a justa causa é sempre individualizada. Além disso, dentro de um contexto de greve a justa causa se examina com muito mais rigor, para que não represente ato de represália contra aqueles trabalhadores que foram os mais ativos no movimento.
Ocorre que não é de fato concreto algum que se trata. O telegrama condena a partir de uma simples citação ao artigo, abrindo prazo para recurso apenas para cumprimento formal de preceito de Acordo Coletivo, que confere uma garantia ainda maior aos trabalhadores contra arbitrariedades na dispensa. Mas recorrer do quê? Qual é a acusação?
No aspecto do outro artigo citado no telegrama, o do Código Penal, a questão é ainda mais grave, pois o trabalhador foi acusado de ter incorrido em um crime, e, concretamente, já foi condenado com a pena da perda do emprego, sem qualquer menção ao ato cometido, fazendo Kafka estremecer no túmulo.
Não é demais lembrar que nos termos da decisão do STF, proferida no RE 589.998, a dispensa, mesmo sem justa causa, de empregado de empresa pública deve ser motivada e a simples adesão à greve não constitui falta grave (Súmula 316, do STF), o que não se altera mesmo com a declaração judicial da abusividade ou ilegalidade da greve (RR-124500-08.5.24.0086, 8ª. Turma do TST, Relatora, Ministra Maria Cristina Peduzzi). Se os fundamentos fáticos para as dispensas fossem o não retorno ao trabalho e a participação ativa em greve considerada ilegal, que por si não ensejaria à justa causa, como visto, não seriam atingidos, como se deu, apenas alguns trabalhadores, seletivamente escolhidos.
As dispensas de 42 (quarenta e dois) metroviários, portanto, estão revertidas de grave ilegalidade, deixando transparecer que foram promovidas, então, em represália, com o objetivo de punir os trabalhadores como um todo pela greve e fazendo-o de modo a gerar medo nas demais categorias de trabalhadores.
No propósito de penalizar os trabalhadores, aliás, o governador não mediu esforços. Seguindo a linha de tratar movimentos sociais, estudantis e trabalhistas como casos de polícia, o que já havia feito quando enviou um enorme contingente policial (400 homens, dois helicópteros, cavalaria e diversas viaturas) para retirada de estudantes que ocupavam, em ato político, a reitoria da USP, em 2011; quando promoveu operação de guerra para desocupação do Pinheirinho, em São José dos Campos, em 2012; quando determinou ataque policial aos manifestantes do MPL, em 2013; quando, no dia 22 de fevereiro de 2014, autorizou que 260 pessoas, dentre as 10.000, que protestavam contra os gastos da Copa, fossem cercadas pela polícia e ficassem, então, em cárcere privado, na rua, com sua liberdade subtraída, sem que tivessem cometido qualquer tipo de ilícito; quando, no último dia 15 de maio, determinou que a polícia, literalmente, fosse para cima dos manifestantes e desmontasse mais um protesto que se realizava contra os gastos da Copa; o governador, por último, na semana passada, utilizou a tropa de choque para coibir piquetes pacíficos dos metroviários e, pelo uso da mesma força, sem qualquer autorização judicial, impediu que uma manifestação de solidariedade à greve dos metroviários ocorresse, levando à prisão 13 (treze) trabalhadores e chegando ao ponto extremo da prisão de um estudante da Faculdade de Direito da PUC/SP, Murilo Magalhães, que acusa ter sido torturado, o que exige apuração urgente, com bastante rigor, vez que ameaça abrir a porta ao regime ditatorial. E convenhamos: “Ditadura nunca mais!”.
A situação é extremante grave e nos faz indagar: que Estado é esse que agride e prende pobres, estudantes e trabalhadores que estão lutando por construir uma sociedade melhor, sabendo, como todos sabem, que nossa sociedade ainda tem mesmo muito a melhorar?
Ocorre que mesmo diante de tantos ataques, os metroviários, com apoio de diversos segmentos da sociedade, assumindo a greve como direito fundamental e atuação política, resolveram manter-se em luta, sendo que desta feita pela readmissão dos trabalhadores ilegalmente dispensados. Prometem paralisação no dia 12/06/14, dia do jogo de abertura da Copa em São Paulo, caso não haja reversão dessa situação.
Nesse quadro, o que vai fazer o governo do Estado? Vai render-se às evidências e reconhecer o direito de greve dos metroviários e sentar-se, com responsabilidade, para uma negociação? Ou vai manter-se na ilegalidade, promovendo, por consequência, a ocorrência de uma situação de total desarranjo na cidade de São Paulo justamente no dia em que o mundo terá seus olhos voltados para cá? Vai mandar baixar o cacete nos trabalhadores, conduzindo-os coercitivamente ao trabalho? Vai mandar prender todos que forem às ruas em solidariedade aos metroviários? Vai determinar a prisão, sem processo, de 70% da população que apóia a greve? Vai calar as falas contrárias à política de criminalização dos movimentos sociais e estudantis e, agora, das reivindicações trabalhistas? Vai usar a força policial para impedir que se apurem as acusações de corrupção envolvendo o Metrô?
E depois? Nas eleições? Vai ameaçar de prisão a quem declarar voto em outro candidato?
É meu caro, a escalada repressiva e autoritária em um país que, enfim, respira a democracia e está disposto a vivenciá-la, tem seu preço...
Enfim: e agora, Geraldo?
São Paulo, 11 de junho de 2014.
(*) Professor livre-docente da Faculdade de Direito da USP.
[1]. SÜSSEKIND, Arnaldo e outros. Instituições de Direito do Trabalho. 21ª ed. Vol. I. São Paulo: Ltr, 2003, p. 576.
[2]. LAMARCA, Antônio. Manual das justas causas. São Paulo: LTr. 1977, p. 367.
[3]. Curso de Direito do Trabalho. 14ª ed. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 557.
[4]. SÜSSEKIND, Arnaldo e outros. Instituições de Direito do Trabalho. 21ª ed. Vol. I. São Paulo: Ltr, 2003, p. 576.
[5]. LAMARCA, Antônio. Manual das justas causas. São Paulo: LTr, 1977, p. 362.
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