A alegria do Evangelho
Por Luiz Gonzaga Belluzzo
"Não
nos é pedido que sejamos imaculados, mas que não cessemos de melhorar,
vivamos o desejo profundo de progredir no caminho do Evangelho, e não
deixemos cair os braços." (Evangelii Gaudium, Papa Francisco)
O
papa Francisco ofereceu aos católicos e cristãos a Primeira Exortação
Apostólica "Evangelii Gaudium". Assim como as encíclicas Rerum Novarum
de Leão XIII, Mater et Magistra e Pacem in Terris de João XXIII, a
exortação apostólica de Francisco, um texto cuidadosamente construído,
aborda as vicissitudes e alegrias da vida cristã no mundo contemporâneo.
A
mídia lhe dedicou editoriais medíocres e comentários banais, como os da
revista "The Economist". Nas profundezas de sua ignorância histórica e
religiosa, a revista escava nas palavras do papa uma argumentação contra
os males do capitalismo, o que abriria espaço para o avanço das
perversidades dos sistemas sociais e econômicos totalitários.
Um Jesus Cristo sem carne e sem compromisso com o outro é a negação do cristianismo
Os
olhares do nosso tempo perderam de vista a ideia de comunidade cristã,
expressão tantas vezes repetida no texto do papa e incrustrada nas
origens do cristianismo. Jacques Le Goff diz com razão que no
cristianismo primitivo e no judaísmo a eternidade não irrompia no tempo
(abstrato) para "vencê-lo". A eternidade não é a "ausência do tempo",
mas a dilatação do tempo ao infinito.
Depois
da encarnação, a escatologia judaico-cristã sofre uma transmutação: o
tempo adquire uma dimensão histórica. Cristo trouxe a certeza da
eventualidade da salvação, mas cabe à história coletiva e individual
realizar essa possibilidade oferecida aos homens pelo sacrifício da cruz
e pela ressurreição. "Não nos é pedido que sejamos imaculados, mas que
não cessamos de melhorar, vivamos o desejo profundo de progredir no
caminho do Evangelho, e não deixemos cair os braços".
Em
um artigo sobre João XXIII, lamentei que homens e mulheres de hoje
falam descuidadamente da herança judaico-cristã como se seus valores
estivessem desde sempre incrustrados na nossa natureza, se é que temos
uma. O cristianismo - o mistério libertador da Encarnação - foi um
divisor de águas na história da humanidade, um movimento revolucionário,
nascido das crueldades e das sabedorias do mundo grego-romano.
Em
uma entrevista sobre seu filme Satyricon, Fellini desvelou a alma que
se escondia no rosto de seus personagens no crepúsculo do império
romano. As máscaras se debatiam entre o tédio das concupiscências e as
angustias da desesperança. Para o grande Federico, o filme escancarava
"a nostalgia do Cristo que ainda não havia chegado".
Tal
como nos personagens do Satyricon, percebo nos católicos de hoje a
nostalgia do Cristo que não voltou. Mas, creia-me o leitor, ele já
esteve entre nós encarnado na simplicidade e na sabedoria camponesa de
João XXIII e parece ter retornado nos exemplos de Francisco.
No
medievo, a Igreja transformou-se numa imponente hierarquia e os poderes
do mundo material frequentemente atropelaram as palavras dos
evangelhos. Não vou aborrecer os leitores com relatos das crises que
pontilharam a história da Igreja, eivada de cismas e heresias, dividida
pela reforma, maculada pela inquisição, atormentada por Copérnico e
Galileu.
João
XXIII escreveu na Mater et Magistra: a Santa Igreja, apesar de ter como
principal missão a de santificar as almas e de fazê-las participar dos
bens da ordem sobrenatural, não deixa de preocupar-se ao mesmo tempo com
as exigências da vida cotidiana dos homens, não só no que diz respeito
ao sustento e às condições de vida, mas também no que se refere à
prosperidade e à civilização em seus múltiplos aspectos, dentro do
condicionalismo das várias épocas.
Francisco
rejeita as formas de religiosidade que fazem recuar o espírito para os
recônditos do individualismo, uma espécie de "consumismo do sagrado" que
ignora os fundamentos comunitários do cristianismo. "Mais do que o
ateísmo, o desafio que hoje se nos apresenta é responder adequadamente à
sede de Deus de muitas pessoas, para que não tenham de ir apagá-la com
propostas alienantes ou com um Jesus Cristo sem carne e sem compromisso
com o outro. Se não encontram na Igreja uma espiritualidade que os cure,
liberte, encha de vida e de paz, ao mesmo tempo que os chame à comunhão
solidária e à fecundidade missionária, acabarão enganados por propostas
que não humanizam nem dão glória a Deus". Um Jesus Cristo sem carne e
sem compromisso com o outro é a negação do cristianismo.
No
seu livro "Homens em tempos sombrios" Hannah Arendt dedicou um capítulo
a João XXIII intitulado "Angelo Giuseppe Roncalli: Um cristão no trono
de São Pedro de 1958 a 1963". Nesse ensaio, Arendt entre outras
narrativas a respeito de Angelo Roncalli, conta o depoimento colhido de
uma camareira do hotel em que se hospedava em Roma: "Senhora", disse
ela, "esse papa era um verdadeiro cristão. Como podia ser isso? E como
aconteceu que um verdadeiro cristão se sentasse no trono de São Pedro?
Ele primeiro não teve de ser indicado bispo e arcebispo, e cardeal, até
finalmente ser eleito como papa? Ninguém tinha consciência do que ele
era?"
Felizmente, ninguém percebeu.
Luiz
Gonzaga Belluzzo, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da
Fazenda é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp e
escreve mensalmente às terças-feiras. Em 2001, foi incluído entre os 100
maiores economistas heterodoxos do século XX no Biographical Dictionary
of Dissenting Economists.
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