segunda-feira, 28 de abril de 2014

Transformar o Mercosul em acordo de livre comércio é forma travestida de implementação da ALCA na América.

ENTREVISTA - ENRIQUE IGLESIAS
O Mercosul criado não é aquele com que nós sonhamos
Ex-presidente do Banco Interamericano de desenvolvimento defende política regional que proteja e impulsione os países-membros
PATRÍCIA CAMPOS MELLO DE SÃO PAULO
Chegou a hora de a América Latina "andar com as próprias pernas". Esta é a opinião de Enrique Iglesias, que foi presidente do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) por 17 anos e assume agora a Cátedra José Bonifácio no Instituto de Relações Internacionais da USP.
Ele trabalhará com pesquisadores da USP em questões ibero-americanas, na cátedra que foi ocupada no ano passado pelo ex-presidente chileno Ricardo Lagos.
Iglesias é cidadão do Uruguai e da Espanha e divide a maior parte de seu tempo entre os dois países.
Folha - Como o senhor vê a instabilidade econômica vivida pela América Latina?
Enrique Iglesias - A América Latina encerrou um período importante na história da região, que foi uma década de expansão extraordinária. Essa expansão teve como ponto de apoio o fato de a América Latina finalmente ter começado a pôr as contas em ordem. Enquanto isso ocorria, começou o ciclo chinês, que estimulou a economia. A essa combinação juntou-se a queda dos juros mundiais, que reduziu o custo de endividamento externo.
E agora acabou essa fase?
Sim. Temos agora uma fase menos generosa. A tarefa hoje é interna. A América Latina precisa caminhar com suas próprias pernas diante da incerteza mundial, desaceleração na China, Europa ainda não totalmente recuperada. Como tem poupança baixa, ainda depende de investimentos externos.
Precisamos aumentar muito a produtividade. Mas precisamos salientar as defesas que a América Latina tem: reservas impressionantes, regime de câmbio flexível; a expansão sem precedentes das exportações, tanto em volume como diversificação.
Portanto, a região tem hoje macroeconomia muito mais sólida do que quando começaram as crises dos anos 1990.
Naquele momento, com crise asiática, russa, argentina, brasileira, era tudo muito mais complicado.
O senhor estava à frente do BID na época, certo? Como a situação está mais tranquila?
Primeiro, a macroeconomia é muito mais organizada. Nós tivemos um fenômeno de "sudden stop" (parada súbita no fluxo de capital estrangeiro) e ativos e passivos dolarizados. Hoje isso não ocorre, somos muito mais donos de nossa situação. Por isso não sou catastrofista.
A estabilidade macroeconômica está ameaçada?
Está, por causa das pressões inflacionárias, que precisam ser administradas com políticas que criem um clima de segurança, confiabilidade. A América Latina tem soluções para continuar. Mas não no ritmo do passado.
Precisamos tomar cuidado para que a classe média que ascendeu não volte para trás.
É um risco?
Certamente. Para evitar isso, é preciso manter a macroeconomia sólida e fazer a reforma que aumenta a produtividade da economia.
A produtividade é um ponto focal, precisamos competir melhor, o que implica investimento em infraestrutura. O investimento em infraestrutura é de menos de 3% na região, o desejável seriam 6%.
Educação é central. E precisamos de uma política inteligente de integração.
Como seria uma política inteligente de integração?
A América Latina não pode ignorar os impactos de fora. Precisamos nos preocupar com a desaceleração da China, OMC, os megatratados comerciais.
Com a Argentina, a ideia seria ter uma cadeia de valor na indústria automotiva, com os dois países totalmente integrados, mas nem isso conseguiram liberalizar...
Em matéria de integração estamos muito atrasados, muito distraídos com problemas políticos. Precisamos criar cadeias de valor para reviver a industrialização latino-americana, não para nos fecharmos, mas para nos fortalecermos.
É possível?
Eu, como uruguaio, sou muito "mercosuliano". Mas não é este Mercosul que defendo.
O Mercosul que criamos não é o que havíamos sonhado. Talvez tenhamos começado pela parte mais difícil, que é a tarifa externa comum do bloco.
Teria sido mais fácil se tivéssemos feito por etapas, começado com um programa energético, outro na indústria automotiva, outro de infraestrutura, coroados pela tarifa externa comum.
A oposição brasileira diz que o Brasil deveria retroceder,
O Mercosul sem dúvida tem que ser revisitado, porque, além de tudo, criou-se um sentimento muito negativo na opinião pública.
O fato de o Brasil não fazer parte de nenhum grande acordo (com União Europeia e Estados Unidos) faz com que o país fique isolado?
O fundamental agora é que o Mercosul possa concluir a negociação com a União Europeia.

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