quinta-feira, 10 de abril de 2014

DITADURA MILITAR & ANOS DE CHUMBO: Nossa democracia democracia não mereceu ser estrupada

Jornal do Terra

Nossa democracia não mereceu ser estuprada

 


No aniversário de cinquenta anos do golpe de 64, o revisionismo anda a solta à cata de uma explicação suportável para um ato que mergulhou o país nas trevas e abriu o caminho para a barbárie. 

A tese mais recorrente equivale a uma espécie de legítima defesa putativa, na linguagem do direito penal –como se o golpe fosse dado diante da firme suposição que o governo se preparava para fazê-lo.

A desculpa possibilita abrigar muitos dos que estiveram do outro lado e hoje se arrependem ou se envergonham do que ajudaram a construir –ou, melhor, a destruir. Mas nenhum ato concreto de violência à democracia por parte do governo pôde ser até hoje demonstrado.

É mesmo uma tarefa demasiadamente inglória pretender que a ditadura possa ser de alguma forma pretexto para preservar a democracia.

E, por isso, diante da ausência de reação armada ao golpe, muitos se esforçam também para atribuir o início da ditadura à fraqueza de Jango.

Não é preciso ir muito longe nesse argumento –é mais do mesmo, diante da já batida criminalização da vítima, muito persistente, como se tem visto, nos casos de estupro.

Mas ninguém, muito menos a nossa democracia, mereceu ser estuprada como foi.

Com a divulgação recente de uma pesquisa do Ibope, feita nada menos do 15 dias antes do golpe, descobre-se aquilo que os jornais, que apoiaram fortemente a ruptura, não mostraram: tanto o presidente quando suas reformas tinham nítido apoio popular.

Ocultou-se a verdade por intermédio de um expediente que persevera até os dias atuais. 

A rejeição das elites e da classe média ao governo é considerada como falta de apoio ou popularidade. Isto porque o melhor retrato que a imprensa tem conseguido tirar é mesmo o selfie –a foto de si mesma.

Da mesma forma como a intervenção militar que suprime a democracia jamais pode ter serventia para revigorá-la, não há desculpas para a ditadura. 

Tanto mais que as duas décadas de sombras não projetaram apenas teses abstratas sobre forma do governo, mas violência, arbitrariedades e restrições a todo o tipo de liberdade –pensamento, expressão, manifestação, ir e vir etc. 

Sobretudo, muitas mortes, algumas delas tão perversas que impediram as famílias de enterrarem seus corpos.

É comum que tenhamos nos acostumado a chamar o golpe de militar, pois foi a ameaça armada que impulsionou o fim do governo. 

Mas este, como se sabe, foi consolidado em uma absurda seção do Congresso a qual estava presente também o presidente do Supremo Tribunal Federal –e, de forma tão ou mais ilegal que o desfile de tanques contra o comando do presidente, foi a declaração de vacância de um cargo que ainda estava regularmente ocupado.

Os poderes também submergiram na aventura autoritária –deputados, senadores e juízes foram arbitrariamente cassados, mas suas casas continuaram a funcionar. Empresas e imprensas, ademais, o apoiaram e o sustentaram com convicção.

Mesmo vinte anos após o golpe, o Congresso deu demonstração inequívoca de que ainda não vivíamos em uma democracia, rejeitando, a despeito de fortíssimo apoio popular (talvez o mais expressivo apoio cívico em toda a história do país) a emenda de eleições diretas para a Presidência da República.

Se o Congresso ainda fortemente manietado pelo poder militar disse não àsdiretas-já em 1984, como supor que cinco anos antes, em 1979, teríamos elaborado um pacto democrático, quando da aprovação da lei da anistia? Com que liberdade e com que legitimidade?

Aprovou-se a lei, sob a força do regime militar, que inseriu no texto a regra de que os crimes conexos também estavam anistiados.

Ainda assim a norma nem sequer deveria ter tido, como teve, tamanho prestígio jurídico.

Primeiro pelo fato de que os crimes cometidos pelos agentes do Estado, até então sequer investigados pelo manto de força que impedia (pois eram praticados por quem tinha o dever de apurar) nunca foram em si conexos com crimes atribuídos a quem militou na guerrilha. 

Um crime jamais fora pressuposto ou condição para o outro, nem com ele teve qualquer liame subjetivo.

Depois, sem valor ainda pela absoluta impossibilidade, já reconhecida pela jurisprudência internacional, de conferir autoanistias (anistias concedidas pelo poder a seus próprios agentes), tanto mais em crimes contra a humanidade, como a sistemática e massiva violação de direitos humanos contra a população civil.

A conciliação pelo alto, a adesão ao colégio eleitoral, trouxe, enfim, ao poder civil, o mesmo presidente do partido que deu suporte ao regime militar, José Sarney. E de lá para cá, foram alianças sobre alianças, sempre mantendo-se em postos-chaves da Nova República aqueles que conspiraram em prol da ditadura.

Não é estranho que tenha sido tão difícil que o país pudesse ao menos conhecer (que dirá, julgar) as barbaridades praticadas pelos agentes da repressão.

O golpe se iniciou com uma mentira e terminou escondendo a verdade.

Foram 21 anos de ditadura que o país tinha a obrigação de conhecer para jamais repetir. 

Mas a ânsia incontida em ocultar, renegar, tergiversar, abrandar ou mascarar apenas mostra que uma porta ainda permanece aberta para novas barbáries. 

Oxalá os primeiros de abril dos próximos cinquenta anos não nos revelem mentiras tão dramáticas.

Nenhum comentário:

Postar um comentário