Comissão da verdade busca médicos que ajudaram militantes
Da mesma forma que médicos atuaram em práticas de tortura durante o regime militar, equipes de saúde agiram em hospitais, e até clandestinamente, para atender a vítimas de tortura, perseguidos políticos e suas famílias. Listar quem são os profissionais que colaboraram com a ditadura e aqueles que se organizaram para atender a quem precisava de cuidados médicos é o que a Comissão da Verdade da Reforma Sanitária (CVRS) busca trazer à tona.
Para investigar a atuação de profissionais da saúde, a CVRS lançou na segunda-feira o núcleo da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), que se somará aos demais oito núcleos espalhados pelo País.
A fundação, referência para médicos sanitaristas em todo o País, foi vítima da intervenção militar e ficou marcada pelo episódio chamado Massacre de Manguinhos. Na ocasião, em 1970, no Rio de Janeiro, dez pesquisadores foram aposentados compulsoriamente. Eles faziam oposição à ditadura e acredita-se que tenham sido denunciados pelos próprios colegas.
“Quando foi feito um trabalho sobre os banidos de Manguinhos e a volta deles, falaram como se fosse uma coisa abstrata, como se a ditadura tivesse vindo aqui, entrado, só que teve um trabalho interno. Provavelmente alguém que fez uma lista e apresentou aos generais os 'comunistas'”, disse a presidente da comissão, Anamaria Tambellini. Por meio de pesquisas em documentos da Fiocruz e do Arquivo Nacional, ela espera encontrar respostas. Muitas testemunhas desse episódio, lamenta, estão mortas e outras “desconversam”.
A CVRS também investiga as redes de profissionais de saúde organizadas para atender a perseguidos políticos. No Rio, informações iniciais indicam o funcionamento de três delas . “Eram médicos que reuniam-se, alguns até militantes, para atender a gente machucada ou doente da guerrilha, com febre tifoide e malária, por exemplo, e seus familiares. Eles (a rede) encontravam lugares para as pessoas fazerem exames e serem atendidas até em hospitais”, disse Anamaria.
A participação de agentes de saúde em práticas de tortura e morte é outro tema da comissão. O desafio é encontrar os prontuários de ativistas que passaram por hospitais militares, como o Hospital Central do Exército, no Rio, onde morreu o ativista Raul Amaro Nin por espancamento após um interrogatório. Mais seis ativistas contam histórias semelhantes. O Exército, no entanto, argumenta que os documentos não existem mais, segundo a Comissão Estadual da Verdade, que esteve na unidade, com as vítimas, na semana passada.
Para comprovar e registrar os casos, a principal estratégia será tomada de depoimentos. Apesar de muitas testemunhas estarem em idade avançada, a presidenta apela por relatos, que podem ser dados no site da comissão. Segundo Umberto Trigueiro, que integra o núcleo da Fiocruz, somente agora as pessoas começam a superar traumas e ganhar confiança para contar suas versões sobre a ditadura.
“É neste momento também, com grande dificuldade, que as comissões da verdade estão tendo acesso às instituições militares, indo fazer reconhecimento dos locais de onde pessoas desapareceram ou foram vítimas de tortura, segundo os relatos históricos”, disse.
Durante o lançamento do núcleo, o pesquisador e ex-diretor da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (Ensp), da Fiocruz, o médico Antônio Ivo de Carvalho relatou sua prisão. “Era início dos anos 1970, a ditadura endurecia à medida que aumentava a resistência”, disse. “Eu sou dessa época, quando movimentos estudantis de todo o mundo saíram às ruas por mais direitos. Fui preso com mais de 12 alunos da Faculdade de Medicina, (da Universidade Federal do Rio de Janeiro) e fiquei seis meses no DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna)”, revelou. No DOI-Codi vigoraram as práticas mais duras de tortura no Estado, como o pau de arara, pelo qual passou Antônio Ivo.
A previsão da CVRS é estender os trabalhos em 2015, mesmo após o fim previsto das atividades da Comissão Nacional da Verdade, que entrega relatório final com recomendações ao governo brasileiro em dezembro de 2014, conforme prevê a lei que criou o órgão.
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