Barroso, sobre Mensalão: ‘Juízes não são vingadores mascarados’
Ministro é o atual relator do processo no STF
POR ANDRÉ DE SOUZA
16/11/2014 8:00
Luís Roberto Barroso durante sua posse no STF em 2013 - Felipe Sampaio (26-6-2013)
BRASÍLIA - Um ano após as prisões dos mensaleiros, o ministro Luís Roberto Barroso, atual relator do processo no STF, avalia que o julgamento foi um marco contra a impunidade, mas admite que a concessão de benefícios aos condenados reforçou a sensação de impunidade. Destaca, porém, que é preciso cumprir a lei.
O julgamento do mensalão foi visto como um marco contra a impunidade. Um ano depois das prisões, é possível ratificar esse entendimento?
Sem dúvida. O sistema punitivo brasileiro reforça as desigualdades de classe que marcam a formação nacional desde sempre. O Direito Penal é duro com os pobres e manso com os ricos. É muito mais fácil punir um jovem preso com cem gramas de maconha do que um agente público ou um empresário que comete uma fraude de um milhão. Nesse sentido, é fora de dúvida que o julgamento da ação penal foi um marco contra a impunidade.
Um ano depois, pode-se dizer que o julgamento do mensalão mudou a forma como o Supremo Tribunal Federal (STF) lida com ações penais e com casos de corrupção?
Penso que sim. A verdade é que a sociedade em geral passou a ser menos tolerante com certas condutas dos agentes públicos e de empresários. E o STF tem uma tendência natural de se alinhar com o sentimento social. De modo que eu espero que se tenha, sim, iniciado uma fase de maior rigor com comportamentos que envolvam malversação de dinheiro público, corrupção e improbidade. Em favor do STF, é possível afirmar que poucos países do mundo foram capazes de condenar e prender o presidente do partido político que se encontrava no poder e seu ministro mais influente. Uma demonstração notável de integridade e independência.
Há a impressão de que a prisão domiciliar para parte dos condenados veio cedo, com menos de um ano de pena. Mesmo seguindo todos os trâmites legais, isso pode reforçar a sensação de impunidade?
Eu, geralmente, só aceito dar entrevista quando acho que há alguma questão relevante a ser trazida ao debate público. E essa questão está refletida na sua pergunta. O país tem um sistema punitivo definido pela legislação. Essa legislação é mais branda do que a de muitos países do mundo. Há dois pontos relevantes aqui. De acordo com a lei, a execução das penas se dá em três regimes: fechado, que é cumprido em penitenciárias; semiaberto, em colônias agrícolas ou industriais; e aberto, que deve ser cumprido em casa de albergado. Depois de cumprir um sexto da pena, o condenado tem o direito de progredir de um regime para o outro. O que tem acontecido entre nós? Quando o preso progride para o regime aberto, ele deve passar para uma casa de albergado. Como praticamente não existem estes estabelecimentos, a jurisprudência antiga e pacífica é que eles devem, então, passar para a prisão domiciliar.
Mas isso não reforça a sensação de impunidade?
Sem dúvida. Por essa razão, eu estou compartilhando essas informações, para que a sociedade brasileira entenda como funciona o sistema, discuta a respeito e decida se quer modificá-lo. Não há decisões politicamente fáceis nem moralmente baratas aqui. O sistema acelera a progressão de regime, dentre outras razões, porque não há vagas nele. Há um déficit de cerca de 250 mil vagas no sistema penitenciário. Para ter um sistema penal que satisfaça as demandas razoáveis da sociedade, é preciso investir recursos na construção dos estabelecimentos próprios, inclusive aumentando o número de vagas. O problema é que o dinheiro que vai para o sistema penitenciário deixa de ir para educação, saúde, saneamento, rodovias, previdência etc. Ou seja: toda sociedade acaba tendo de fazer escolhas, escolhas que por vezes são trágicas.
E como o senhor se sente diante desse sistema?
Eu cumpro a lei. A lei é que materializa essas escolhas da sociedade. Em uma democracia, não existe, de um lado, a sociedade civil, e de outro, o Estado. O Estado é o que a sociedade e os seus agentes eleitos constroem. A única coisa que um juiz não pode fazer é tratar de maneira discriminatória o condenado que a sociedade odeia. Juízes não são vingadores mascarados. Fazer justiça é aplicar a lei com imparcialidade, sem paixões, sem ódios ou espírito de vingança. É justamente quando esses sentimentos afloram na sociedade que você precisa de um juiz corajoso para fazer o que é certo. Eu tenho deveres para com a Constituição, o bem e a Justiça. O sentimento da sociedade não me é indiferente, e eu o levo em conta. Mas sirvo à Justiça, e não à opinião pública. Um juiz digno desse nome não joga para a plateia.
As penas impostas aos políticos foram, em geral, mais baixas que as impostas aos empresários e executivos. Tanto que alguns políticos já conseguiram fazer progressão de regime, e os empresários e executivos, não. Houve alguma desproporção na punição?
Isso se deveu à própria dinâmica dos fatos e ao número de delitos cometidos por cada um dos réus. Os políticos mais conhecidos foram condenados por corrupção ativa, que à época era punido com penas de um a oito anos. Alguns foram condenados por corrupção passiva e lavagem de dinheiro. Basicamente, uns compraram e outros venderam votos. Já quanto aos empresários, diversos deles foram condenados por uma cumulação de crimes, que incluíram peculato, corrupção ativa, lavagem de dinheiro, gestão fraudulenta de instituições financeiras e evasão de divisas.
Com a discussão em torno da punição de poderosos e sua ida para a prisão, foi possível observar alguma melhora na discussão da condições do sistema carcerário brasileiro?
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Se há uma unanimidade no país, é que o sistema penitenciário se encontra degradado. Eu, antes de ir para o STF, propunha, como advogado, ações para discutir questões de interesse público, como uniões homoafetivas, proibição de nepotismo e direito das mulheres interromperem a gestação em certos casos. Pois bem: no momento em que a presidenta (Dilma Rousseff) indicou o meu nome, eu estava começando a estudar a propositura de ações para a reestruturação do sistema penitenciário. Como os condenados e presos em geral fazem parte de uma minoria invisível, a política majoritária não se interessa por eles. Por isso, terá de ser o Judiciário a indicar esse caminho. Acho que a AP 470 (mensalão) deu visibilidade maior a essa questão. Não houve melhora ainda. Mas já há a percepção de que esse é um tema que tem que entrar na agenda do país.
Qual a sua avaliação final de tudo o que aconteceu?
Uma coisa me chamou particular atenção neste caso. Nenhum dos condenados, em momento algum, revelou arrependimento, culpa sincera ou achou que devia desculpas ao país. A impressão que eu tenho é que todos, estranhamente, se sentem vítimas do sistema político. “Era assim antes de nós, nós jogamos o jogo como era jogado e depois de nós continuou a ser a mesma coisa”. E o que é aterrador é que talvez tenham uma certa razão. Se não mudarmos o sistema político, sobretudo para baratear o processo eleitoral, o financiamento de campanhas continuará por trás de todos os escândalos do país. Não sairemos do pântano. A centralidade do dinheiro nos roubou o idealismo e o senso de patriotismo.
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